Era pelos idos de 2009, quando visitamos a linda Matriz de Nossa Senhora do Amparo de Maricá, construída no século XVIII. Seu interior, com suntuosos ornamentos rococós, abriga uma belíssima imagem da padroeira, feita em madeira. A atividade do dia era a identificação das obras de arte sacra, para uma futura publicação. Após contemplar aquele espaço solene e deslumbrante, chegando ao presbitério, chamei um assistente e, olhando para o camarim no topo do altar-mor, disse: “Anota aí: Nossa Senhora do Amparo. Madeira. Século XVIII.” Nesse instante, interrompendo a atividade, chega o vigário. “O Sr. gostou da nossa padroeira?! É linda, né? Encomendei em São João Del Rei e chegou há quinze dias”.
Ficamos atônitos. Ok, a peça parecia ter sido repintada recentemente. Mas alguém nos dias atuais fabricar uma imagem devocional com aquele refino escultórico que somente as grandes oficinas barrocas brasileiras tinham, era algo totalmente inusitado para nossa equipe. Foi a primeira vez que me deparei com o que considero a arte barroca tradicional brasileira, que chegou até nós como um legado e continuação da antiga arte colonial.
Hoje, mais de quinze anos depois e com o advento do comércio digital, sabemos que essa arte circula por todos os lugares. O que nos impõe a seguinte reflexão: como está a catalogação, reconhecimento e difusão do legado dessa arte tradicional barroca? Conhecemos seus grandes expoentes e escolas? Onde estão seus principais ateliês?
Sabemos que a arte tradicional é aquela inserida numa cultura popular de um determinado grupo, com saberes e técnicas transmitidos ao longo do tempo, de mestres para discípulos. Existem museus ou coleções museológicas brasil afora que dão conta de acervos de arte tradicional, geralmente associada às populações e comunidades do seu entorno. Lembro de cor do Museu de Arte Religiosa e Tradicional de Cabo Frio e do Centro Cultural São Francisco, em João Pessoa/PB. São museus incríveis. Recomendo a visita. Curiosamente – e talvez não seja coincidência, ambos foram conventos franciscanos no passado.
No entanto, a arte vernacular barroca atual – feita à moda antiga, me parece estar circulando muito mais no mercado da arte do que nas coleções museológicas. Sabe-se, por exemplo, que ali e acolá coexistem oficinas tipo “mestre piranga”, “mestre bolo de noiva”, e até “estilo aleijadinho”. Sobre esse último, lembramos do professor João Adolfo Hansen: “Tem até a piada que em BH, quando as granfinas querem dizer que o Aleijadinho que elas tem casa é magnífico, elas dizem ‘Aleijadinho, Magina! O meu é um Aleijadérrimo!’ Essas coleções estão em mãos de gente tão poderosa que são até capazes de fazer um juiz censurar um livro [que desautoriza um conjunto de obras que pertencia a alguns colecionadores].”
Portanto, caso não olhemos com a devida atenção e reconhecimento para essa significante parcela da produção artística contemporânea – através de mapeamentos, novas pesquisas, ações de difusão e identificação etc. -, poderemos estar validando uma quantidade enorme e crescente de cópias e falsos históricos, travestidos de peça antiga pelo mercado da arte – sempre em busca de um novo “Aleijadérrimo”.