A reabertura de algumas casas de espetáculos vem ganhando destaque nos noticiários. O antigo Cinema Roxy, famoso pela qualidade de sua projeção com telas cinerama ou sistema sensurround, se transformará numa casa para atrair turistas. O Canecão, palco de referência da MPB, recebeu um projeto híbrido, ainda no papel. O teatro Carlos Gomes foi reaberto pela prefeitura. Esperamos que seja devolvido efetivamente ao público, pelo menos com temporadas populares, como era uma prática.
Há cerca de 50 anos a cidade do Rio de Janeiro era pródiga em salas de espetáculos teatrais, teatros de fato, templos de Melpômene e Tália.
Além da multiplicidade de locais, a quantidade rivalizava com a qualidade das peças em cartaz, para vários gostos e públicos diversos. Os apreciadores da arte teatral encontravam diferentes ambientes e capacidades, como os elegantes teatros Glória, Manchete, Mesbla, Sesc-Copacabana, Serrador, Vila-Lobos; os grandiosos, como o Ginástico, Carlos Gomes e o Theatro Municipal, que conciliava luxo e generosas dimensões; os mais modestos, que abrigavam intrigantes espetáculos, alguns experimentais, como Cacilda Becker, Dulcina, Nacional de Comédia (depois Glauce Rocha) e o próprio reduto da contracultura, o Opinião.
Era comum a realização de uma campanha nos finais de ano “Vá ao Teatro”, que distribuía kombis pela cidade, oferecendo ingressos a preços acessíveis, permitindo a presença de classes sociais e faixas etárias diversas, além do incentivo oferecido às escolas públicas.
Muita gente plasmou sua cultura teatral com tais iniciativas, gerando um público futuramente criterioso que dificilmente apreciaria alguns espetáculos das décadas seguintes. Textos leves, divertidos, com críticas sociais e políticas superficiais, os patrocinadores perceberam o potencial comercial desses espetáculos, mantendo-os em cartaz por muitos meses.
Em breve, aqueles patrocinadores batizariam novos ou antigos edifícios teatrais, assim como fizeram com estádios de futebol, inicialmente em São Paulo, rompendo com suas próprias tradições, como aconteceu com o famoso Palestra Itália, cuja versão contemporânea recebeu o nome de uma seguradora. O antigo Parque São Jorge, casa do Corínthians, foi abandonado e trocado por uma arena apadrinhada por fabricantes de medicamentos. O consagrado Morumbi, casa dos são-paulinos, virou nome de chocolate, cuja pronúncia lembra um dos Trapalhões…
Considerando as propostas mirabolantes com aval da prefeitura para construção de novos estádios para Vasco e Flamengo, brevemente surgirão surpresas em seus futuros nomes, incorporando possibilidades relacionadas aos seus endereços como Barreirão e Manguezão.
Alguns teatros do Rio já iniciaram a troca de seus nomes tradicionais por alguns patrocinadores. Para saudosistas como eu, rompe a sensação de pertencimento a um grande momento da história teatral, comprometido pela falta de textos que se tornaram referências, tanto de autores nacionais quanto notáveis adaptações.
Numa época de rigorosa censura, o teatro era um dos principais instrumentos de resistência, aliado a alguns shows musicais (não havia se consagrado stand-up, com raras exceções).
Havia alguns truques para driblar a censura: aguardar o Pasquim nas madrugadas das quintas-feiras, antes de ser recolhido pela repressão; combinar com os vendedores de compactos-simples para guardar alguns exemplares, certamente censurados, como Comportamento Geral, de Gonzaguinha (1972), ou o mítico Je t’aime, gravado por Jane Birkin e Serge Gainsbourg (1969); assistir aos ensaios gerais de espetáculos ameaçados de suspensão, como Calabar ou às últimas apresentações de peças ou shows, quando eventualmente viriam as versões integrais, sem os cortes da tesoura.
Um pequeno grupo de amigos participava dessa missão. Um deles, que conheço há mais de 50 anos, quase septuagenário, faz aniversário esta semana. Foi o companheiro mais assíduo nessas jornadas e a ele dedico esta coluna.
Tive a indescritível e imensurável satisfação de assistir a todos os espetáculos abaixo listados, certamente responsáveis diretos pela formação cultural e política de outros tantos jovens como eu, com ingressos a preços acessíveis, naquela década de céu nublado sujeito a chuvas e trovoadas, como anunciara a primeira página do Jornal do Brasil de 14 de dezembro de 1968.
Nos palcos, textos inesquecíveis escritos por Alcione Araújo (Bentes Altas), Aldo Leite (Tempo de Espera, notável espetáculo maranhense sem diálogos), Aldomar Conrado (O Voo dos Pássaros Selvagens), Augusto Boal (Murro em Ponta de Faca), Chico Buarque e Paulo Pontes (Gota d’Água), Dias Gomes (O Santo Inquérito), Gianfrancesco Guarnieri (Um Grito Parado no Ar e Ponto de Partida), Ilo Krugli (História de Lenços e Ventos), João das Neves (O Último Carro, com uma revolucionária cenografia, colocando todos dentro de um trem), Marcílio Morais (Mumu, a Vaca Metafísica), Maria Adelaide Amaral (A Resistência), Oduvaldo Viana Filho (Corpo a Corpo e a notável Rasga Coração), Plinio Marcos (Dois Perdidos numa Noite Suja) traduções de Dario Fo (A Morte Acidental de um Anarquista), Georg Büchner (A Morte de Danton, nos túneis do metrô da Glória), Jason Miller (A Noite dos Campeões), Jean Genet (O Balcão). Lope de Vega (Fuenteovejuna), Robert Patrick (Os Filhos de Kennedy), Samuel Beckett (Esperando Godot), No final da década de 1970, o grupo Asdrubal Trouxe o Trombone inovou o panorama teatral com seu Trate-me Leão, assim como Antunes Filho, com sua representação revolucionária de Macunaíma.
Para os interessados ou simplesmente curiosos, ficam as sugestões para leitura, certamente com impacto muito menor do que aquele causado em seus privilegiados espectadores.
No teatro João Caetano, o bem sucedido projeto “Seis e Meia” trazia encontros notáveis a preços populares para junto do público, pois “todo artista tem que ir aonde o povo está”, como canta Milton Nascimento em seus Bailes da Vida. Ali se apresentaram Alceu Valença e Jackson do Pandeiro; Jards Macalé e Moreira da Silva; Sérgio Ricardo e o Grupo Maria Déia, além de Simone e Belchior em início de carreira e outros tantos nomes referenciais da MPB.
Muito mais do que shows, eram lições de liberdade e democracia expressas nas letras, nos sons, nas atitudes para um público ávido pela convivência entre diferenças, ainda sob os ventos libertários de Woodstock.
Abusando dos clichês, mudaram os textos, os teatros, as músicas ou mudamos nós?
Saudosistas? Pretensos intelectuais? Talvez simplesmente algumas pessoas que viveram a suprema felicidade (título do último filme de Arnaldo Jabor) de receber aquele maremoto de cultura que instigava constantemente a inteligência e alimentava um ideal de qualidade, liberdade e ensinava a pensar.
O interessante é que esses teatros são CENTRALIZADOS NA ZONA SUL E CENTRO os subúrbios não existem para os governos e os artistas importantes que lá não querem pisar, cadê a reforma do teatro de MARECHAL HERMES ????? Kombi vendendo ingressos baratos ? Para quem ? Pobres compram esse ingresso barato e depois teem que pagar uma fortuna de trem e ônibus caros para ir para a zona sul e centro e mais gastos para voltar. DEPRIMENTE.