Roberto Anderson: A caixa de livros

Colunista do DIÁRIO fala sobre as inquietudes da pandemia e um achado durante o confinamento

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Mais um dia na pandemia. Interminável pandemia, alongada e tornada absurdamente letal por obra e graça de quem nos governa. A cada dia a sua agonia e a tarefa de encontrar o que fazer dentro do apartamento já mil vezes esquadrinhado. Mas sempre há uma arrumação nova nos esperando, e hoje foi o dia de checar aquela estante de livros enjeitados, pedindo para serem doados, levados a algum local onde outras pessoas possam pegá-los e, quem sabe, lhes dedicar um renovado interesse.

Livros são como camadas geológicas dos interesses que passaram por nossas vidas. Dos que tenho, a maioria foi comprada. O que investi neles poderia ter sido gasto num cinema ou num restaurante, mas escolhi os livros. Comprava acreditando que um dia os leria, que era importante ter sua companhia, tê-los à mão. Outros foram presenteados. Vindos de alguém que, talvez, quisesse me dar um toque, como seja menos materialista, ou aperfeiçoe a sua inteligência emocional. Mas, por falta de tempo ou outra desculpa esfarrapada, boa parte permaneceu sem ser lida, intenções não realizadas.

Agora já não adianta, meus interesses foram mudando e, dificilmente, dedicarei minhas horas, mesmo essas da pandemia, a lê-los todos. Há títulos curiosos. Como a Questão Agrária do “renegado Kautsky” veio parar ali na companhia de O Que Fazer, do seu detrator Lenin? A prateleira socialista estava bem fornida. Livros de Fidel e do Che, se misturavam aos sobre a Guerrilha do Araguaia, e aos de Stalin (meu deus, eu paguei por um livro de Stalin!), que por sua vez estava junto ao livro sobre o Solidarnosc??. URSS, China e Cuba estiveram no meu radar durante um bom tempo e a eles dediquei boa parte das minhas intenções de leitura. Valeu camaradas, um dia nos reencontraremos.

Há outros achados inexplicáveis. Tenho certeza de que jamais comprei um livro com os ensinamentos do Osho, ou um sobre espiritismo, mas eles estão lá. Sei que comprei o da Royal Canadian Air Force, que na juventude me prometia um roteiro para um corpo em forma. Quem terá me presenteado com Estamos Grávidos? Terei lido? Terei aprendido a ser um bom companheiro, um bom pai? Há também os que vieram de sebos, ou seja, já descartados anteriormente, e que agora serão mais uma vez devolvidos. As Origens do Ritual na Igreja e na Maçonaria deve ser um livro interessante, assim como As Vitaminas das Frutas. Mas suas páginas queimadas pelo tempo, esfarelantes e pródigas em incitações a espirros me fazem recuar. Espero que sejam acolhidos por alguém menos alérgico.

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Uma grande novidade nesse movimento de renovação das estantes, e um alívio à culpa de quem se desfaz de livros, são as caixas de troca, ou minibibliotecas em ruas e praças. Me lembro quando teve início o movimento de se deixar um livro num banco de praça. Era uma ação generosa, de fazer o saber, a literatura, ou qualquer manual de vida circular, passar por diversas mãos. Mas havia sempre o temor de que uma chuva repentina os destruísse, arruinando aqueles belos propósitos.

As caixas de troca de livros existem hoje em diversas cidades do mundo. No Rio, as vejo em muitas praças e ruas mais calmas. Outro dia encontrei bons livros de urbanismo e de arquitetura na caixa da Rua Alice, que vieram se juntar aos da minha coleção. Ela era bonitinha com uma portinhola de vidro, que alguém fez o desfavor de levar embora. Agora os livros lá deixados estão sujeitos às rajadas de ventos das chuvas, o que preocupa.

Mas o momento é de desapego. Livros vão e há os que chegam, agora comprados online. Novas camadas de interesse se sucedem e a produção dos novos autores brasileiros está bem interessante. É bom também revisitar os clássicos. Machado, Eça de Queiroz, Lima Barreto, o mundo do passado, das pequenas traições, do apego a valores que azedaram e envenenam nossos dias. Em tempo, nem todos os livros antigos se foram e, em termos de política, teimosamente permaneceram, entre outros, Gramsci, Marx e alguns Lenin…

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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