Roberto Anderson: A fuligem das queimadas sobre nós

Arquiteto e urbanista fala sobre a triste situação que chegou ao Rio de Janeiro

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Com muita razão, Adriana Calcanhoto diz que Cariocas não gostam de dias nublados. O Rio é solar, alegre e inconsequentemente amigo das atividades ao ar livre. Mas nesse penúltimo fim de semana de setembro, do ano covídico, uma nuvem densa e espessa cobriu a cidade. Chegou uma frente fria, pavor de quem gosta de praia. Ela cobriu a cidade de um modo diferente, mais cinza, mais espesso. Trouxe consigo a fumaça das queimadas do Pantanal. Trouxe a fuligem que se formou após as labaredas consumirem as árvores mais altas, as palmeiras, transformando-as em tochas incendidas. Trouxe a fuligem da queima da vegetação rasteira, dos arbustos, do pelo das onças, do couro das antas, das penas das araras. E a dor dos macacos e os gritos das aves em fuga.  

Um ar sujo entrou por nossas narinas, acomodou-se no nosso peito. Respiramos as evidências de um crime federal. Inalamos a nossa impotência ante um sistema que insiste em produzir mais grãos, mais bois, em exportar tudo o que possa às custas da destruição da Floresta Amazônica, do Pantanal, da Caatinga. Respiramos a nossa derrota ante a destruição de vinte por cento do Pantanal por incêndios iniciados pela ganância que domina os costumes no nosso país. Respiramos a nossa contribuição anual para o aquecimento global. E quando a chuva caiu, foi negra, ácida, venenosa. As sujas marcas desse crime correram para as sarjetas, foram dar nos rios, desaguar no mar. Foram empestear os cabelos de Iemanjá.

A Cidade do Rio de Janeiro também já foi um pantanal, na verdade um grande manguezal. O Mangal de São Diogo avançava até o que hoje é a Avenida Presidente Vargas. Na época da ocupação da Cidade Nova, os proprietários de terrenos naquela área eram responsáveis por manterem os canais de dragagem que secaram o lugar. O Centro do Rio era mesmo cheio de áreas alagadas, com diversas áreas pantanosas e lagoas, como a Lagoa de Santo Antônio, na atual Rua 13 de Maio, da Pavuna, nas proximidades do Largo de São Francisco, e do Boqueirão, onde hoje é o Passeio Público. Na Lapa, atrás dos atuais Arcos, se encontravam a Lagoa do Desterro e os alagadiços de Pedro Dias. Não é à toa que quando chove essas áreas logo ficam inundadas.

No atual Largo do Machado havia a Lagoa da Carioca. Em Botafogo, entre as atuais ruas Bambina e Marques de Olinda, havia a Lagoa de Dona Carlota. A Lagoa Rodrigo de Freitas se espalhava por uma área bem maior do que a atual, onde foi mal contida. Na Barra e no Recreio ainda temos várias lagoas, muito poluídas, mostrando que a afluência social é apartada de bons costumes. E nas Vargens, os canais testemunham o trabalho de dragagem outrora realizado naquela área.

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Em meio ao cinza escuro que cobriu a cidade, as lagoas já aterradas, os jacarés expulsos dos nossos alagados, as aves e mamíferos que por aqui passavam, toda a fauna e flora perdida para o concreto da cidade choram a destruição do Pantanal. Lamentamos todos por nos sabermos um pouco responsáveis pelo que nos aconteceu no mundo da política. E por estarmos tão distantes, incapacitados de levar um balde sequer da água do mar carioca para apagar o fogo que consome o Brasil.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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