Roberto Anderson: Amor ao vazio

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre demolições de prédios na cidade do Rio

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No aniversário da cidade, no último dia 01 de março, o Prefeito Eduardo Paes pediu um presente ao governador: a demolição do prédio que serviu como anexo da Assembleia Legislativa na Praça XV, de propriedade do Estado. O prédio em questão é bem feio mesmo, um caixote de vidros escuros, que destoa das demais edificações da área. E esse é um prefeito que gosta de demolir. Demoliu a Perimetral e obteve enorme sucesso com a abertura de uma nova área de lazer na Área Portuária, que até hoje não tem um café, uma loja, um bar sequer. Apertou com sádica satisfação o botão para a demolição do prédio histórico da Brahma no Catumbi, e viu surgir no seu lugar um mastodonte envidraçado que até hoje permanece desocupado. Então, será a demolição a melhor alternativa? 

O prefeito parece ser tomado por um ímpeto modernista, que tanto mal já fez à cidade arrasando quarteirões. O próprio Catumbi é uma vítima desse processo. Demoliram os sobrados, passaram um viaduto, cujo nome homenageia o golpe militar de 1964, e o bairro ficou irreconhecível, descosturado, sem alma. A mesma coisa aconteceu na Lapa, onde toda uma rede de ruas e sobrados, plenos de vida, foram demolidos, abrindo-se uma clareira na frente dos Arcos. Propunha-se então a passagem da Avenida Norte-Sul, que também rasgaria a região da Saara, e a construção de um quarteirão modernista, ao estilo de Brasília e da Avenida Chile. O projeto era do excelente arquiteto Affonso Eduardo Reidy. Excelência em projetos arquitetônicos não necessariamente se reflete em excelência em projetos urbanísticos. O resultado para a Lapa não poderia ser pior. Onde a Lapa hoje pulsa é na região que restou de pé, ficando a área resultante da demolição vazia durante o dia, só ocupada à noite, por ambulantes. 

Os arquitetos modernistas, ou funcionalistas por sua tara em separar as funções nas cidades, gostavam de um vazio, de isolar uma edificação antiga do seu contexto, deixando-a solitária na paisagem. Quanto engano! Camillo Sitte, arquiteto austríaco do século XIX, já observava que as catedrais góticas se erguiam no meio do tecido urbano medieval, dando-se a conhecer por partes, em visadas fragmentadas. Hoje sabemos que é dessas surpresas e velamentos que gostamos. 

A Cidade do Rio de Janeiro cresceu não só por processos de reedificação, mas também por aterramentos de lagoas e praias, empurrando o mar para mais longe. E esses foram processos sucessivos e cumulativos. As urbanizações ao longo da orla no período Passos criaram praças e a avenida Beira Mar. Em seguida, o aterro da praia do Flamengo criou um novo parque à sua frente. O arquiteto Cláudio Taulois estudou como as áreas livres daquele primeiro período ficaram sem muita função após o advento do Parque do Flamengo. Uma atitude interessante da Prefeitura, apesar de ousada, seria permitir a edificação de prédios baixos, para uso público, como cafés e restaurantes, junto a esses espaços públicos obsoletos no Centro, na Glória e no Flamengo. O gramado sem uso ao lado da Seaerj, a Praça do Monroe e a área entre a Murada da Glória e a Praça Paris são exemplos de espaços que pedem alguma ocupação que lhes dê uso. Aliás, esse último já é precariamente ocupado aos domingos por um bar ambulante e por rodas de samba.

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Voltando à nossa Praça XV, é impossível não constatar que ela está esvaziada de atividades. Há um fluxo de passageiros das barcas que a atravessam em horários de pico, mas não muito mais acontece. A Bolsa de Valores foi comprada pela Bolsa de São Paulo e fechada. A construção da Perimetral levou à demolição do vibrante mercado municipal da Praça XV, linda obra em ferro do período Pereira Passos. Atualmente, o único fato interessante ali é a feira de antiguidades aos sábados. Na administração Luiz Paulo Conde ainda havia o projeto cultural Fim de Semana no Centro, que buscava animar aquela área, abrindo igrejas para concertos e promovendo espetáculos na praça e visitas guiadas. Então, simplesmente demolir o antigo anexo da Alerj para criar mais um vazio talvez seja um desserviço à cidade. É preciso discutir melhor.

Sim, esse edifício agride a paisagem. Mas, talvez, pudesse ser renovado, retrofitado, alterado, qual seja a denominação que se queira usar para uma intervenção que repense as suas fachadas e o seu interior, lhe dando novo uso. Ali um dia houve uma edificação neoclássica, que teria sido a sede do Ministério do Interior, não um vazio. As imagens desse passado mostram um edifício em harmonia com seus vizinhos. Também do ponto de vista ambiental é um despropósito demolir. Estamos em momento de reciclar, reutilizar, não de desperdiçar. Qualquer uso é melhor do que a criação de um novo vazio, que se somará aos já existentes e não ajudará em nada. Repensar o edifício pode ser um caminho e um grande desafio, já que não se deseja a criação de um pastiche. Um concurso público de projetos de intervenção seria bastante adequado. É preciso superar de vez esse ranço funcionalista. Buscar o vazio é buscar a não cidade.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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