Há coreógrafos que têm uma marca própria, que reconhecemos em cada novo trabalho, o que é bom quando ela é de qualidade. Alguns têm essa marca na encenação, outros na temática de suas obras. E há os que têm uma escrita coreográfica particular, um vocabulário de movimentos, ou como eles são construídos. Os trabalhos de Márcia Milhazes têm essa característica.
Márcia é senhora dos detalhes, da sequência de movimentos que parecem se repetir, mas que se alteram sem que se perceba ao certo como isso se deu. Ela se diz barroca. Nesse ponto, lembra o trabalho da sua irmã artista plástica. Mas, Márcia é também construtora de emoções. Emoções que são transmitidas pela movimentação de seus bailarinos. Assistir a um trabalho seu deixa no espectador um leve sorriso no rosto ao perceber a inteligência e o intrincado do que observa.
Em seus trabalhos, há uma construção de quase personagens, seres capazes de transmitir dúvida, alegria, angústia, sem dizer palavra, apenas com o fluxo de movimentos que passam por seus corpos. Movimentos que executam com sua individualidade reforçada, presente ali em cena.
Celeste é o seu mais novo trabalho, criado para a bailarina Maria Alice Poppe. O encontro das duas artistas é potente, capaz de gerar fagulhas intensas. Um solo, uma mulher sozinha em cena, com toda a força da capacidade de interpretação através do movimento de Maria Alice, lapidada em anos de muito trabalho. Celeste evoca muitas mulheres no corpo ágil da bailarina. Uma jovem ingênua talvez, ansiosa, angustiada, uma Macabéa. Há também o êxtase que torce o corpo, dobra a espinha, de uma Teresa de Ávila. Mas, é apenas Celeste.
Mãos se contorcem, cotovelos se encontram, para depois se afastarem em braços que se abrem e deixam uma perna subir. O corpo gira, as mãos se cruzam, os braços se estendem à frente e acima, a cabeça se volta para baixo, depois para trás, o corpo estremece, o olhar se volta para o lado, numa tessitura de movimentos em permanente fluxo de emoções e energia. Que bom poder usar a palavra tessitura, é a mais apropriada. É uma boa definição da impressão que a obra nos causa.
Esse encontro entre essas duas maravilhosas trabalhadoras da dança, artistas de imenso talento, ainda pode render muitas delícias para um público carente de produções da dança carioca.