Roberto Anderson: Frágil paisagem cotidiana

Arquiteto e urbanista contempla a cidade do Rio de Janeiro

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Foto: Roberto Anderson

Forçando a pedalada, se supera a pequena subida. É preciso afundar mesmo a perna e o pé contra o pedal. Depois, deixar a gravidade levar a bicicleta ladeira abaixo, solta, o vento batendo na cara. E logo a visão da praia se abre. As árvores não estão floridas, mas sei que são amarelas. Em pouco tempo, delicadamente colorirão a calçada. A areia da Praia de Botafogo é branca, pontilhada de balizas das redes de vôlei. Como ainda é cedo, pessoas se exercitam na calçada e na areia. Na água não há ninguém, porque é sabido que é poluída. Mas como é bela essa paisagem! O Pão de Açúcar em frente, imenso, de curvatura perfeita, pedra clara se erguendo acima do mar.  

A ciclovia leva ao Parque do Flamengo, onde gramados e áreas ensaibradas se alternam, pontilhadas por conjuntos das árvores e palmeiras mais espetaculares do planeta, escolhidas com visão e carinho pelo gênio Burle Marx. Ali também o Pão de Açúcar se insinua, assim como o mar e a visão de Niterói. Vez por outra, sobe ou desce um avião do Santos Dumont levando passageiros maravilhados com o que veem. Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro…

O Catete tem sobrados coloridos, tem palacetes, e já abrigou a presidência da República, quando no Brasil se podia protestar debaixo da janela de um presidente. O Largo do Machado mostra a conversa paisagística entre as figueiras, plantadas por Auguste Glaziou, e os bancos e canteiros sinuosos de Burle Marx. Uma figueira que há alguns anos caiu, deixou à vista o Colégio Amaro Cavalcanti, uma das mais lindas escolas públicas da cidade, parte das chamadas escolas do Imperador. E a torre da Igreja Nossa Senhora da Glória sobressai acima de tudo, apesar do descuido de contêineres colocados bem à sua frente para a venda de ingressos para as vans do Corcovado.

Abro a janela sobre o vale de Laranjeiras. O Cristo é o que primeiro se vê, seu braço esquerdo pairando sobre o Cosme Velho e Santa Teresa. Visto de Botafogo, o Corcovado é um penhasco íngreme, uma lança contra o céu, cuja ponta é a estátua do Cristo Redentor. Visto de Laranjeiras, o Corcovado é o topo de uma mata vertical, um manto onde as folhas brancas das embaúbas pontuam o verde intenso da mata atlântica. O trem que leva lá para cima de vez em quando se deixa ver no meio da mata, especialmente nos meses de menos chuvas na cidade.

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O carioca, especialmente o morador de áreas mais turísticas, anda distraído por essas paisagens. Ele vive sua vida cotidiana, vai às compras, encontra amigos, dá uma corrida para gastar os quilinhos a mais, inserido em cartões postais. Visitantes param, fotografam, perdem a respiração frente às impactantes visões que a cidade proporciona. É aquilo que viram nas cenas das novelas, nos filmes, ou até mesmo no noticiário policial. Desejaram vir aqui, economizaram, conseguiram um alojamento nada barato. Circulam pela cidade maravilhados e ainda podem ter a sorte de ver passar um ator famoso, ou encontrar a cantora adorada almoçando no pequeno restaurante. O carioca apenas (ou sublimemente) aqui vive.      

Bem viver numa cidade é construir afetividades, tanto com as pessoas do lugar, quanto com o espaço físico, o ar, os cheiros, os sons e as paisagens. É ter recantos preferidos que se acredita que poucos conheçam. É entrelaçar a vida com as ruas e calçadas, os conhecidos e os desconhecidos que ali encontramos, os edifícios que nos encantam, aqueles onde se mora ou onde já se morou, e aqueles onde moram nossos amores. Por isso, imaginar a sua cidade sendo bombardeada, como acontece atualmente em diversas partes da Ucrânia, causa imensa aflição.

Nos é difícil, angustiante, imaginar a Saara esvaziada de sua vida, e os seus lindos sobrados ainda fumegantes de um ataque recente. Como imaginar o edifício da Central do Brasil bombardeado, sua torre destruída? É o que se vê em Mariupol. Um teatro foi destruído com pessoas no subsolo! Os subúrbios de Kiev têm sido impiedosamente destruídos, e seus habitantes forçados a fugir. Se, como lá, um ataque à nossa cidade viesse do Norte, sofreríamos com a destruição do Jardim do Meier, do Mercado de Madureira, e dos incontáveis conjuntos habitacionais. Veríamos a fragilidade das casas das favelas frente a bombas de fragmentação.

Como os moradores de Odessa, talvez estivéssemos a ensacar a areia do Piscinão de Ramos, da Praia de Copacabana, e de todas as nossas praias e praças para construir trincheiras que fizessem frente ao invasor. Um míssil, qual as balas perdidas com as quais estranhamente nos acostumamos, poderia atingir o minhocão da Gávea ou o Conjunto do Pedregulho. Nosso MAM perderia suas vidraças, estouradas pelo deslocamento de ar de uma bomba caída na noite anterior. Nossos amores estariam em fuga, adentrando países vizinhos, onde, com sorte, almas boas os acolheriam.

Por que pensamentos tão sombrios em meio ao cartão postal? Tudo é transitório. A paz que desfrutamos não é eterna. O bicho homem é estranho e sabe fazer coisas terríveis. Sob o sol que aquece minha pele, de frente para a Baía de Guanabara, em meio a tanta beleza, penso nos ucranianos. Penso e sinto a sua dor. Por favor, paz!  

Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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