Roberto Anderson: Mais Mais Valia, mais Mais Valerá

As legislações do gênero Mais Valia são bem antigas entre nós. Vêm desde 1946, quando o Rio de Janeiro ainda era o Distrito Federal. São antigas e polêmicas, uma vez que representam atalhos para, mediante pagamento, legalizar o que foi feito errado nas edificações

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As legislações do gênero Mais Valia são bem antigas entre nós. Vêm desde 1946, quando o Rio de Janeiro ainda era o Distrito Federal. São antigas e polêmicas, uma vez que representam atalhos para, mediante pagamento, legalizar o que foi feito errado nas edificações. De tão previsíveis que são as suas edições, se tornaram incentivos à desobediência à legislação urbanística. Todos sabem que é possível fazer algo ilegal porque em algum momento o prefeito de plantão aprovará uma lei permitindo legalizar tudo. Se contar isso para um legislador de alguma cidade mais séria ele irá dizer que é mentira. Mas, no Rio isso é verdade.

Ainda mais estranha foi a legislação criada por Crivella em 2020, e abraçada posteriormente por Eduardo Paes, de legalizar o errado que ainda não foi feito. Por ela, novamente mediante pagamento, seria possível legalizar uma infração às legislações municipais ainda na fase do projeto. Como se estaria legalizando um erro ainda não executado, ela ficou conhecida como Mais Valerá. O Ministério Público e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo a contestaram no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que a suspendeu. O STF manteve essa suspensão.

Mas, em 2022 o Prefeito Eduardo Paes enviou lei semelhante à Câmara de Vereadores, que foi aprovada. Estranhamente, não encontrou nova oposição das entidades que se bateram contra a lei do prefeito Crivella. Sem oposição, agora Paes encaminhou à Câmara de Vereadores o Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 02/2025 que reedita a sua lei dos puxadinhos, com Mais Valia e Mais Valerá. Como ele tem uma maioria naquela Casa, pronta a aceitar suas propostas, o projeto certamente se tornará lei.

As periódicas edições dessas leis monstrengos jogam na lata do lixo as determinações do Plano Diretor, tornam sem sentido se ter regras para edificação, e destroem a paisagem da cidade. São instrumentos arrecadadores em que a qualidade de vida dos cidadãos é vendida por mais alguns recursos nos cofres municipais. Esses recursos se vão rapidamente, os efeitos das legalizações não.

Já no seu segundo artigo, o PLC 02/2025 permite, mediante pagamento, aumentar a intensidade de uso de comércio e serviços em áreas da cidade. É verdade que a vedação a essas atividades em certas áreas vinha de uma visão do urbanismo funcionalista, que também vedava residências em áreas comerciais. Era um equívoco, mas sua superação precisa ser acordada através de discussões que tenham a participação da sociedade, e ser integrada ao Plano Diretor. Não é assim, via lei casuística, que se faz mudanças que poderão gerar conflitos em áreas em que a predominância da atividade residencial está consagrada.

Hotéis, que em função dos eventos esportivos, receberam incentivos fiscais e autorizações para superar a média de altura dos bairros em que estão inseridos, agora poderão ser convertidos em edifícios residenciais. Coberturas poderão ser construídas acima do último pavimento permitido. Poderão existir acréscimos horizontais às edificações em quaisquer dos seus níveis. E varandas, que não contavam como áreas edificadas, poderão ser fechadas e incorporadas às áreas internas dos apartamentos. Tudo mediante pagamento.

O PLC 02/2025 também incentiva, sempre mediante pagamento, a recomposição volumétrica das quadras da cidade, ou seja, onde existam pequenos edifícios cercados de grandões, eles poderão ser substituídos por edifícios altos, que se igualem em altura aos demais da quadra. Primeiramente, é necessário entender a razão da existência dessas disparidades de alturas entre os edifícios. Ela, em geral, é resultado de alterações casuísticas das legislações relativas às edificações na cidade ao longo do tempo. Num determinado momento só é possível edificar até tal altura, mas no outro, a altura permitida pode até dobrar. A edição de legislações pontuais, fora dos Planos Diretores, como o PLC em análise, é que produz essas discrepâncias.

Se quadras com alturas harmônicas são desejáveis, também é verdade que edifícios menores, com muita personalidade arquitetônica, inseridos entre os grandes podem ser enriquecedores da paisagem urbana. Mas as pressões por parte das incorporadoras, para a sua demolição e posterior reconstrução, que o PLC propicia, podem levar ao seu desaparecimento. Isso, antes mesmo que a sociedade decida se gostaria, do ponto de vista do Patrimônio, que eles permanecessem.

Essas legislações arrecadadoras e com potencial para mutilar a paisagem da cidade não são nada boas. Mas o Prefeito é pop, promove shows em Copacabana, e parece ser a única alternativa democrática para se derrotar a extrema-direita no Estado do Rio de Janeiro. Então tudo pode.

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Roberto Anderson
Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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