Roberto Anderson: O coroinha

'O coroinha é compenetrado, cioso da sua posição. Todos os seus gestos têm mais cerimônia do que os do próprio padre. Ele não vira de costas para o altar'

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Foto: Divulgação

O ateu, quando em uma missa, tem duas possibilidades de como se portar: ou se integra à paisagem, sentando e levantando, e movendo a boca durante as rezas, ou permanece imóvel, correndo o risco de ser tomado por desrespeitoso. Mas, nesse caso, pode passear seus olhos por tudo o que se passa, observando, analisando, comparando, exercendo de verdade o ditado de um olho no padre, outro na missa.

No passado, os ritos da igreja católica já foram bem mais misteriosos e complexos. A mudança para a missa na língua do país, com o abandono do latim, e a virada do celebrante para a frente, buscaram aproximar os fiéis da celebração, dando-lhes inclusive funções, como algumas leituras e o cumprimento aos que se encontram mais próximos.

Mesmo assim, permanecem interessantes variações nos ritos, de acordo com os eventos que são celebrados. Além das missas normais, há aquelas especiais, como a da Páscoa, a do Natal, sem falar nos ritos mais complexos de todos, que são aqueles da semana santa. É quando há a cerimônia do lava-pés. Mas, nada se compara ao acendimento do círio pascal, cuja chama é a única luz na igreja às escuras. Grandes alfinetes, simbolizando os cravos que prenderam o Cristo à cruz, são espetados na larga vela, entre palavras que parecem apenas conhecidas pelo celebrante. E há as missas solenes, com cânticos, entradas processionais e alguma condescendência ao velho latim.

O padre a tudo conduz, mas há alguém que faz a ponte entre os fiéis e o sacerdote: o coroinha. Ele é um dos fiéis, mas galgou uma posição acima. É quase um concelebrante, não fora apenas um ajudante. Mas as suas vestes indicam que ele ultrapassou a fronteira entre os fiéis e o sacerdote. Ele é um fiel com proximidade ao vinho e ao pão. Ele atravessou os limites que separam a nave do altar.

O coroinha é compenetrado, cioso da sua posição. Todos os seus gestos têm mais cerimônia do que os do próprio padre. Ele não vira de costas para o altar. Antes, caminha de costas, recuando até onde considera que Deus não se zangará. Ele pega o cálice que o padre lhe entrega, como se fosse o maior tesouro do mundo. Ele se coloca atrás do padre, as mãos em suspenso, prontas para executar a tarefa seguinte. Ele faz soar o sino, ele balança o turíbulo com o incenso, envolto na fumaça com a majestade de um futuro príncipe.

Ele não age com naturalidade, como a do padre, habituado à função por anos de exercício. Ele é provisório, sua performance é testada a cada missa, passível de ser substituído por novo coroinha já na próxima missa. Sua atuação é afetada por essa precariedade, o que lhe confere um quê de nervosismo, um certo ar de neurastenia.

Ao mesmo tempo, o coroinha precisa se manter leve e diáfano. Ele precisa parecer assexuado e, de preferência, ser jovem. O buço não lhe cai bem. Quanto menos adentrado na puberdade, melhor. Se se torna adulto, vira um sacristão. Um ser incorporado aos bens da igreja. O coroinha não, ele é um ser passageiro.

O coroinha é o anjo que esvoaça em torno do padre, a ave pernalta que delicadamente sobe e desce os degraus do altar, o ser solícito que atende ao padre, que lhe enxuga o suor da testa, que lhe passa o cálice e a patena. De preto, ou de vermelho, com rendadas sobrepelizes, ele é a festa para os olhos do fiel distraído, e o enigma para o ateu curioso.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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