Roberto Anderson: O Iroko e a vizinhança

Como estão os cuidados com nosso patrimônio

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O trabalho de proteção ao Patrimônio brasileiro teve início com o antigo SPHAN, que buscou identificar o que seria Patrimônio no Brasil e responder ao interesse da construção de uma moderna identidade nacional, quando a arquitetura colonial preencheu esse papel. Obras de arquitetura excepcional tiveram maior destaque, mas o tempo levou a uma ampliação conceitual sobre o que deveria ser incluído na noção de Patrimônio. Evoluiu-se para a noção de Patrimônio Cultural e houve a incorporação de bens que não se enquadrariam nos tradicionais livros das Belas Artes.

No Estado do Rio de Janeiro, o Inepac realizou tombamentos paradigmáticos, como os bondes de Santa Teresa, a Casa da Flor e a Pedra do Sal. Dentro desse quadro de abertura para bens valorados pela sociedade se enquadra o tombamento em 2016 da Casa de Candomblé Ilê Axé Opô Afonjá em São João de Meriti. O poder público reconhecer o valor de patrimônio do terreiro foi um fato marcante, que colocou o Inepac num caminho anteriormente trilhado pelo Iphan, com o tombamento realizado em 1986 da Casa Branca do Engenho Velho, situada em Salvador.  

O Ilê Axé Opô Afonjá teve muita história, tendo sido fundado em 1896 numa casa na Pedra do Sal, no Rio de Janeiro. Em 1947 ele se mudou para o local atual, num loteamento de casas simples na Baixada Fluminense. Desde o início se compreendeu que o tombamento era o reconhecimento de um valor imaterial, que se vinculava a uma edificação e a um terreno, sem que os mesmos viessem a ter um valor preponderante sobre a densidade da história do terreiro e das práticas ali realizadas. Apesar disso, o tombamento envolveu uma edificação, criando algumas situações que desafiam a gestão do bem pelo órgão de Patrimônio.

Exemplo disso foi a solicitação para a colocação de uma placa de sinalização do terreiro. Numa casa comercial de arquitetura eclética ou colonial os órgãos de tombamento têm regras sobre tais sinalizações. Mas como deveria ser a placa do terreiro de candomblé? Vale informar que a solução encontrada deixou os responsáveis pela casa satisfeitos. Outras dúvidas poderão surgir. Como deve ser pintada a casa? É possível demolir partes anexas à mesma?

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Um momento interessante foi quando se constatou que a gameleira, onde habitava o orixá Iroko, plantada muito próxima ao limite do terreno, havia perigosamente estendido suas raízes pelos terrenos vizinhos, abalando as estruturas das pequenas casas. O problema cresceu, gerou protestos, e passou a exigir uma solução. A Mãe de Santo então sonhou que teria licença para realizar o corte, e fez a solicitação ao órgão de Patrimônio.

Essa não era uma questão trivial. Estaria a árvore protegida pelo tombamento? Por razões ambientais relutava-se em cortar a árvore. Por razões de segurança das edificações esse corte seria aceito. Mas não era uma árvore qualquer. Ela era a morada de uma entidade. E em se cortando, não estaria o órgão de Patrimônio compactuando com um desrespeito a uma divindade?

Diversas tratativas ocorreram em torno dessa questão. Uma equipe da Universidade Rural se propôs a realizar métodos de enxertia, de forma que o DNA do velho Iroko estivesse presente na muda que seria plantada em local mais propício. Tudo se mostrava complicado. No entanto, a Mãe de Santo tinha a resposta mais simples, que os técnicos relutavam em aceitar. No seu sonho, o espírito se incorporaria, sem maiores problemas na nova muda a ser plantada.

O caso do Ilê Axé O pô Afonjá mostra como, ao abrir-se para novos horizontes e valores mais diversos, os órgãos de Patrimônio se vêm confrontados com novos desafios. É, também, uma ação de imenso significado, especialmente quando sobem as vozes de grupos que buscam hegemonias e exclusões. Essa é uma senda aberta que só tende a ser ampliada. Com a mente aberta saberemos encontrar a boa gestão desse Patrimônio.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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1 COMENTÁRIO

  1. Prezados,
    Que bom ler um texto de reconhecimento da importância desse tombamento, efetivado em caráter provisório em 1 junho de 2016. Um tombamento muito comemorado pela comunidade por ele afetada e também pela sociedade civil de forma mais generalizada, mas geralmente incompreendido por parte da área técnica. Foi, de fato, uma vitória. Mesmo com tanta reticência em relação a ele pela equipe de arquitetura do INEPAC à época, o então jovem arquiteto André Cavaco realizou o levantamento sozinho cabendo a mim, que estava como Diretor Geral, elaborar também solitariamente a defesa no que tange aos valores de natureza material do imóvel, já que no quesito móvel houve total suporte das museólogas Raquel Di Biase e Marcela Coelho e no que tange aos aspetos históricos e sociais pude contar com o apoio do professor Sérgio Linhares e da pedagoga Luciane Barbosa.
    Perseguiu este tombamento, além da vontade da comunidade do terreiro (representado por Iyá Regina) e de simpatizantes (como o incansável Frei Tatá), o legado de Darcy Ribeiro e Italo Campofiorito.
    Se me permite apenas uma objeção, o lugar da discussão da preservação nunca deveria ser a decisão de corte e replantio de Iroko, tomada pacificamente pela comunidade detentora do saber, e tampouco sobre uma sinalização indicativa do bem cultural, mas sim de mecanismos que permitam que essa cultura fundamental seja fortalecida e continue reforçando os atributos que emprestam valor e significado à materialidade protegida.

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