Roberto Anderson: Patrimônio em risco

'O mais recente exemplo desse descuido com o Patrimônio carioca foi a iniciativa da atual direção do Iphan, felizmente anulada pela Justiça, de destombar o Solar do Visconde de São Lourenço'

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Solar Visconde São Lourenço

A cidade do Rio de Janeiro já ganhou muito no passado. Graças ao ouro descoberto no século XVIII nas Minas Gerais, ela substituiu Salvador como capital da Colônia. A chegada da família real portuguesa, no século seguinte, foi capaz de transformá-la radicalmente, provocando uma forte expansão urbana, a abertura de teatros e de instituições de ensino. Até mesmo o infame tráfico de pessoas escravizadas enriqueceu a cidade. 

Depois, é o que sabemos, o Rio de Janeiro foi sede da Corte no Império, com a construção de inúmeros solares e casarões, e capital da República, com a construção de sedes ministeriais, palacetes da burguesia ascendente, e monumentos públicos para o embelezamento de ruas e propriedades. O resultado desses acontecimentos foi a constituição de um Patrimônio único  no país, por sua qualidade e diversidade, reunindo exemplares da arquitetura colonial, neoclássica, eclética, moderna e mesmo pós-moderna. 

Mas a cidade do Rio de Janeiro também perdeu muito. Deixou de ser a capital do país, perdeu a posição de principal centro financeiro nacional, perdeu sedes bancárias, indústrias, empregos e dinamismo econômico. E continua perdendo, já que volta e meia se anuncia a saída de alguma empresa sediada na cidade. 

Infelizmente, aconteceu também a destruição de boa parte das marcas desse passado. Imóveis importantes, como a Igreja de São Pedro dos Clérigos, o Elixir de Nogueira, o Palácio Monroe, a sede do Derby Club, uma grande quantidade de sobrados coloniais e a maior parte dos edifícios icônicos da Avenida Central foram demolidos. Muitas vezes essas demolições ocorreram por obras de modernização, outras por ignorância criminosa. Somente no final do século passado uma consciência preservacionista se impôs, com a proteção de grandes conjuntos urbanos, como as áreas do Corredor Cultural e das diversas Apacs então criadas.

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Essas, que foram iniciativas auspiciosas, têm sido contrariadas por uma constante dilapidação desse rico Patrimônio de nossa cidade. Monumentos, como os de Osório e de Deodoro, têm sido continuamente vandalizados. Imóveis importantes, especialmente os de propriedade do Poder Público, se deterioram, sem que obras sejam feitas para interromper a sua decadência. É o caso, por exemplo, do edifício pertencente à UFRJ na esquina da Praça da República com a Rua Visconde do Rio Branco, que se arruina a olhos vistos. E também do edifício do Automóvel Club, hoje pertencente à Prefeitura. 

O mais recente exemplo desse descuido com o Patrimônio carioca foi a iniciativa da atual direção do Iphan, felizmente anulada pela Justiça, de destombar o Solar do Visconde de São Lourenço. Esse destombamento, irregular e bastante suspeito, foi logo acompanhado pela tentativa de demolição das poucas paredes que ainda restavam em pé no antigo Solar. 

O Solar do Visconde de São Lourenço é uma obra de arquitetura de enorme importância para a  Cidade do Rio de Janeiro e para a arquitetura brasileira. É importante por sua idade, tendo sido iniciado ainda no século XVIII. É também importante por seu porte, ocupando uma esquina das ruas do Riachuelo com Inválidos, elevando-se no centro até o terceiro pavimento. E pela feição, de belo exemplar de arquitetura senhorial urbana do período colonial. 

Infelizmente, pude acompanhar algumas das diversas fases da decadência do Solar. Ele era habitado por várias famílias, na forma de casa de cômodos, depois de ter sido abandonado pelos proprietários com posses. Depois, foi evacuado e a decadência se acelerou. Algumas vezes, a Defesa Civil marretou trechos da sua fachada que ameaçavam cair na calçada. Essas marretadas demoliam uma parte, mas abalavam outras. E novamente a Defesa Civil era chamada e repetia a operação. Depois, pessoas espertas demoliram o interior e passaram a explorar um estacionamento, atividade econômica incompatível com um bem tombado. 

Sempre houve a esperança de um restauro. Mas agora o Iphan, de forma absolutamente irregular e equivocada, tentou promover o destombamento do imóvel, premiando os que agiram para dilapidar o solar, um absurdo. E o novo proprietário, ignorando a Apac da Cruz Vermelha, já saiu demolindo o que restava. É incrível ver que a ação da atual direção do Iphan acabou, de uma certa forma, sancionando crimes cometidos contra o Patrimônio! 

Em casos assim, em que ocorreram demolições não autorizadas, em geral se obriga que o imóvel seja reconstruído. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o edifício do jardim de infância anexo à Escola Senador Corrêa, em Laranjeiras. Por decisão judicial, o imóvel foi reconstruído após uma demolição não autorizada.

Graças à decisão da juíza da 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro, o Iphan foi obrigado a anular o ato de destombamento do imóvel. No entanto, seria realmente excelente se a Prefeitura demonstrasse algum interesse na recuperação desse bem, e de outros em igual situação. Os cariocas muito agradeceriam.  

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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