Roberto Anderson: Patrimônio negro

No mundo todo, a noção de Patrimônio passou por uma revisão conceitual, que implicou na ampliação das categorias e bens a serem considerados como tal

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No mundo todo, a noção de Patrimônio passou por uma revisão conceitual, que implicou na ampliação das categorias e bens a serem considerados como tal. No Brasil, como não poderia deixar de ser, essa evolução levou à incorporação de bens que não se enquadram nas visões tradicionais sobre arte e cultura, mas que são pertinentes ao conceito mais amplo de Patrimônio Cultural. Como consequência, houve a abertura para a proteção também de bens que foram elaborados por pessoas negras, ou que estão embebidos de valores da cultura negra. Esse é um aspecto importante do processo de ampliação da visão sobre Patrimônio, não ainda devidamente ressaltado, e que apenas começa a ser observado na ação do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, o Inepac.

O que se quer chamar a atenção aqui é para uma situação bastante diferente daquela observada, por exemplo, no tombamento da Fazenda Machadinha, em Quissamã, onde a senzala foi preservada como parte do conjunto. Aliás, ela é atualmente o único elemento daquele conjunto ainda razoavelmente mantido, já que a tradicional incúria com os bens de Patrimônio levou ao arruinamento da casa grande. Não se trata, tampouco, do tombamento de boa parte da arquitetura produzida até o século XIX, que usou mão de obra escravizada.

O tombamento, em 1984, da Pedra do Sal, na Área Portuária, é um belíssimo marco dessa possibilidade de novos olhares. É o reconhecimento dos valores agregados a um acidente físico pelo trabalho de braços negros, pela cultura do samba, pelo estabelecimento de um território negro na Cidade do Rio de Janeiro, a Pequena África, e pela afirmação da ocupação de um lugar.

Em 1983, já havia ocorrido o tombamento da Casa da Flor, obra da paciência e obstinação de Gabriel dos Santos, nascido em 1893, filho de ex-escravizado, que juntou caquinhos de cerâmicas para fazer uma linda casa de sonhos em São Pedro da Aldeia. Nesse mesmo ano ocorreu o tombamento do mural “Samba e Carnaval”, de Di Cavalcanti, realizado em 1929 no Teatro João Caetano, o primeiro mural modernista do Brasil. Lá está uma representação do povo brasileiro, da sua música, mulheres e homens negros, o morro e a vida das ruas.

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Em 2001, o Estado do Rio de Janeiro tombou a igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, no Centro, construída por uma confraria de negros, reverenciando os dois santos que, mesmo sendo ambos etíopes, viveram em momentos distintos. Infelizmente, ela não se encontra bem conservada. E em 2016, foi feito o primeiro tombamento pelo Estado de um terreiro, a Casa de Candomblé Ilê Axé Opô Afonjá. Ele havia sido fundado em 1896 numa casa na Pedra do Sal, tendo se mudado em 1947 para o local atual, um loteamento de casas simples em São João de Meriti.

Em 2018, em sequência ao reconhecimento pela Unesco como Patrimônio Mundial, o Inepac realizou o tombamento do sítio arqueológico do Cais do Valongo, que hoje é o ponto focal da memória da escravização e do traslado forçado de africanos para o Brasil.

Sem os avanços ocorridos na compreensão da complexidade da produção cultural, e a consequente ampliação do conceito de Patrimônio, bens ligados à cultura negra não teriam sido enxergados e protegidos. Até o momento, são esses os bens dessa natureza tombados pelo Estado do Rio de Janeiro. Poucos, não é mesmo? Mas a porta se abriu e é preciso passar.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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