Roberto Anderson: Patrimônio vandalizado, dinheiro público no lixo

'Por que tem que ser assim, é o que sempre nos perguntamos. Porque após alguns cuidados com a coisa pública, vêm períodos de descaso e abandono?'

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Sucessivas vezes, por descuido com os recursos públicos, a construção do aqueduto da Lapa naufragou. Isso apesar de ter sido considerada uma obra importantíssima, longamente desejada, que levaria a água do rio Carioca à cidade do Rio de Janeiro, então apenas um povoado entre quatro morros e a atual praça XV. Essa triste tradição, que tanto nos atormenta, por mais de uma vez, levou ao desaparecimento dos impostos sobre o vinho que deveriam custear aquela obra. Somente após a intervenção do governador Gomes Freire, é que o aqueduto foi definitivamente concluído, já no século XVIII. 

Desde então, os Arcos da Lapa, que tanto serviram, deixaram de dar passagem à água, os dois chafarizes que um dia existiram no Largo da Carioca foram demolidos, o bonde passou a usar o aqueduto, o próprio bonde quase sucumbiu à falta de cuidados com esse delicioso meio de transporte, e Santa Teresa passou por altos e baixos, resistindo atualmente como belo lugar de uma gente criativa e animada, mas também de favelas, pobreza e violência.

Por que tem que ser assim, é o que sempre nos perguntamos. Porque após alguns cuidados com a coisa pública, vêm períodos de descaso e abandono? Por que aquilo que é feito, mais à frente é desfeito? Por que aquilo que é recuperado, em seguida é abandonado pelo Poder Público sem mais explicações? O abandono e destruição da obra de restauração do Reservatório do Carioca, em Santa Teresa, após apenas quatro anos de sua realização, é chocante. Aí vemos um encurtamento do prazo em que o Poder Público é capaz de detonar uma obra tão importante e tão bem executada. 

Até 2018 o Reservatório se encontrava abandonado pela Cedae, e havia sido pilhado por pessoas inescrupulosas, que haviam levado os gradis de ferro das bacias de água, as esquadrias, telhas, louças e tudo mais da casa do encarregado da cloração da água, e as obras de arte dos jardins. Até mesmo peças em pedra haviam sido quebradas pelo vandalismo que lá havia se instalado. O mato crescia e o imóvel era constantemente invadido. Com recursos do Fundo Estadual de Compensação Ambiental, já que o reservatório está situado no Parque Nacional da Tijuca, teve então início a cuidadosa restauração do Reservatório e da caixa da Mãe D’Água. 

Esta última existe desde o século XVIII, quando se construiu o sistema que levaria a água do Rio Carioca até os sedentos habitantes da cidade. Funcionava como uma caixa de passagem da água, dentro de uma construção quadrangular à beira da rua, encimada por uma cúpula. Já o reservatório foi uma obra do Império, de 1865, que contava com um açude, bacias de pedras aparelhadas para decantação das areias do rio, três bacias igualmente de pedra para acumular a água, duas casas de funcionários, e um belo jardim romântico, defronte a uma escadaria bipartida. Juntamente com um conjunto de outros reservatórios do Estado do Rio de Janeiro, o Reservatório do Carioca e a caixa da Mãe D’Água são tombados pelo Inepac.

A Cedae, que antes havia permitido a destruição, também decidiu participar do projeto. Ela definiu que as bacias de pedra deveriam ser cobertas para que viessem a receber a água tratada proveniente do Reservatório do França, que fica um pouco mais adiante, também na rua Almirante Alexandrino. Assim, finalmente os moradores da favela do Guararapes, situada logo abaixo do reservatório, passariam a receber água tratada, o que até aquele momento (e até hoje) não ocorria. Todos os elementos em pedra foram restaurados, os gradis foram refeitos, e o açude foi limpo. A casa do antigo encarregado do cloro foi adaptada para servir como centro de recepção a visitantes. E o jardim romântico, junto à rua, foi recuperado a partir de uma extensa pesquisa iconográfica, que identificou as espécies ali anteriormente plantadas. Um novo chafariz preencheu o local vazio onde um dia havia um chafariz original, já desaparecido.

Essa obra lindíssima, que devolveu um espaço de lazer e de história aos cariocas e turistas foi acompanhada de perto por técnicos do Iphan e do Inepac, e custou algo em torno de R$ 4 milhões. Quando terminada, foi entregue à Cedae, que chegou a colocar seguranças no local. Pena que a Cedae não abriu o espaço a visitas, deixando inúteis o Centro de Visitantes, os painéis explicativos e a trilha sinalizada, que levava até às Paineiras. Logo veio a privatização daquela empresa e, nesse processo, o Reservatório deve ter sido visto como um peso morto. A concessionária Águas do Rio não manteve ninguém cuidando do local e, aparentemente, não entendeu do que se tratava.

O resultado é que hoje, tão pouco tempo depois, o Reservatório do Carioca está novamente depredado. O chafariz e os bancos foram furtados, as coberturas de vidro sobre as bacias estão sujas e afundadas, como se alguém tivesse pulado em cima, e o jardim está destruído. Por falta de manutenção, a água do rio agora invade toda a superfície do reservatório, caindo em cascata pela escadaria sobre o jardim. Em caso de chuva mais forte, essa é uma situação de risco para o bairro, já que a água está correndo fora do leito natural do rio.

Está tudo desfeito, uma tristeza. Talvez a nova concessionária não saiba que o descuido com o Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro é um crime. Talvez poucos saibam disso e nem os órgãos de patrimônio, após anos obscuros, tenham se dado conta do que vinha ocorrendo. O fato é que tudo o que havia sido feito no Reservatório do Carioca foi desfeito e os recursos públicos foram jogados no lixo. Mais uma vez. Até quando? 

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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