A maioria das crianças dos subúrbios cariocas e de muitas cidades do Brasil aguardava (muitas ainda esperam) com avidez e voracidade a chegada do dia 27 de setembro, quando se celebra a festa de São Cosme e São Damião.
Esta comemoração iniciou-se no período colonial, cerca de 1530, quando foi construída uma ermida na cidade de Igarassu, em Pernambuco, considerada por muitos uma das primeiras igrejas do Brasil e difundiu-se por todo o território nacional, reforçada pelo sincretismo originário das religiões afro-brasileiras. No Nordeste, eram invocados para proteger as vilas contra epidemias, conforme registram alguns ex-votos entregues por aqueles que receberam graças dos santos.
Este amálgama reflete uma apropriação recíproca dos atributos das divindades, quando santos católicos adquirem poderes de entidades do panteão africano: Santa Bárbara protege contra os relâmpagos, atribuição original de Iansã; São Jerônimo está presente no trovão, assim como Xangô; Nossa Senhora dos Navegantes foi associada à Rainha do Mar, Iemanjá. Uma divina miscigenação que deve nortear os princípios de tolerância religiosa num país constitucionalmente laico.
Os gêmeos Cosme e Damião, que em algumas manifestações recebem um terceiro irmão, Doum, são associados aos ibejis, no Candomblé, protetores das crianças, daí a associação com a distribuição de doces e guloseimas.
Conta a tradição que os irmãos nasceram no século III, no mundo árabe, filhos de uma abastada família. Adultos, estudaram Farmácia e Medicina, que se complementavam na Antiguidade. Com os conhecimentos adquiridos em escolas sírias, se dedicaram ao tratamento e cura dos enfermos, sem cobrar pelos serviços
prestados.
Era uma ameaça ao panteão das divindades romanas, gerando perseguição pelo Imperador Diocleciano, acusando-os de bruxaria. Presos, foram condenados à morte algumas vezes, sobrevivendo em quase todas: apedrejamento e flechadas, queimados vivos, afogamento, aumentando seu prestígio até a decapitação, que encerrou a vida terrena dos gêmeos milagrosos.
Até 1969, a Igreja Católica celebrava a festa dos santos no dia 27 de setembro. Com a reforma litúrgica, transferiu-a para o dia anterior, dedicando a data apenas a São Vicente de Paulo, padroeiro das Associações de Caridade, cujos dados biográficos são muito precisos em relação à data de sua morte. Dessa forma, apartava-se as celebrações dos santos católicos das comemorações de religiões de matrizes africanas que os associava aos ibejis, acrescentando outros irmãos com Doum, Alaba, Crispim, Crispiniano e Talabi, dos quais Doum tornou-se o mais conhecido, envolto em algumas lendas. Ele representa e protege crianças com até sete anos ou aquela criança que não veio, um consolo para os pais de natimortos ou que morreram bebês. Seria o motivo principal dos estudos de Cosme e Damião, pois o pequeno morrera por falta de médicos.
No Rio de Janeiro, a igreja de São Cosme e São Damião localiza-se na rua Leopoldo, 434, no bairro do Andaraí, onde havia uma capela dedicada aos santos gêmeos. Em 1944 foi criada a paróquia e no ano seguinte o Arcebispo Dom Jaime Câmara abençoava a pedra fundamental do edifício-sede.
Trata-se de uma obra moderna, com fachada escalonada e um corpo central de seis pavimentos que se destaca sobre uma ampla varanda. A igreja conta com ampla nave principal, com grande vão livre em estrutura de concreto armado, com destaque para o altar-mor que abriga os oragos e obras religiosas dispostas nas paredes e vitrais do salão onde se reúnem os fiéis.
Enquanto as missas acontecem, as ruas se povoam de crianças, muitas delas acompanhadas de adultos, que cedo acordam para disputar os doces e guloseimas. Os tradicionais saquinhos, outrora de papel, com a imagem dos gêmeos estampada geralmente em verde e vermelho, transbordam com todo tipo de iguarias, algumas delas obrigatórias: pés-de-moleque, cocadas, bananadas, pirulitos, suspiros, marias- moles, balas em profusão.
Nas calçadas, pés descalços, saquinhos amarrados como guirlandas em torno dos pescoços miúdos, ondas infantis ao sabor de gritos: – “Ali, ali tá dando doce!” E a turba se deslocava de uma esquina para outra, de uma portaria para a próxima, percorrendo portões diversos, recebendo doces e mais doces, até mesmo pelo próprio ato de receber, contabilizar os saquinhos recebidos naquela adoçada disputa infantil, se mostrando mais hábil na captura daqueles açucarados troféus.
Alguns devotos ofereciam prendas de melhor qualidade como chocolates, biscoitos, doces embrulhados separadamente, saquinhos de coco-de-rato, brinquedos. Ou mesmo convidavam um número definido de crianças (sete ou quatorze) para uma mesa posta para este fim, com bolos, manjares, refrescos, refrigerantes, sanduíches vários. Alguns determinavam o percurso dos pequenos, que deveriam entrar pela porta da frente, participar da mesa e sair pelos fundos, levando seus saquinhos e brinquedos, tudo devidamente organizado com auxílio dos desejados cartões.
Doces folguedos! No entanto, em alguns casos são tolhidos por atos de intolerância de alguns que impedem, cerceiam ou discriminam uma manifestação tradicional e essencialmente popular. Também a insegurança contribui para a diminuição progressiva deste hábito nacional.
A criançada dos condomínios, dos consoles de videogames, dos celulares, certamente não mais estará envolta por aquele alegre alarido, pelas corridas nas ruas com pés descalços, em chinelos, alpercatas ou tênis coloridos.
Quem sabe estarão em um jogo com personagens que simulem a disputa pelos doces em corridas interplanetárias povoadas por heróis da Marvel ou DC?
Ou então, por um QRcode, encomendem um saquinho de doces a ser entregue em hora marcada por um trabalhador de um aplicativo de alimentação?
Enquanto isso, ainda resistem alguns poucos pequenos correndo pela rua, com aqueles ávidos olhos infantis, explorando as ruas da vizinhança, sacos amarrados no
pescoço, cartões com a imagem dos santos na mão… ”Ali! Alguém ainda está dando doce!”