Sonia Rabello: Praça Mário Lago ou Buraco do Lume?

Para a ex-procuradora geral do Município, o uso público da área já está consagrado há mais de 45 anos, tendo inclusive sido gasto dinheiro para aterrar e ajardinar o antigo “buraco”. Na prática, já ocorreu o usucapião

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Buraco do Lume - Foto: Domingos Peixoto/Agência O Globo

Muitas dúvidas e poucos esclarecimentos sobre a situação deste espaço, no coração do Centro do Rio, que a mídia cunhou com o codinome de “Buraco do Lume”. É um “Buraco” ou é a Praça Mário Lago? E se o “Buraco” for Praça, e se as praças forem do povo, como alguém poderia ser dono dela, e pedir a aprovação de um enorme prédio na Praça?

Há inúmeros bons textos que explicam que ali, no local onde os cariocas veem uma praça, usam como praça, transitam como se fosse uma praça, – um logradouro público -, este espaço não seria, no seu todo, uma só praça! O pedaço triangular, voltado para a Avenida Rio Branco seria, oficialmente, a Praça Mário Lago (antiga Praça Melvin Jones) e, no pedaço da praça mais próximo ao Terminal Menezes Cortes, existiria um terreno particular, de cerca de 2800 m²!

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Sim, é possível que este terreno tenha existido, e que até ainda esteja registrado no Registro Geral de Imóveis em nome de algum proprietário. De fato, ele foi objeto de arrematação ao Bradesco, em leilão ocorrido em São Paulo em 2019, por R$ 7.560.000, preço esse compatível com as restrições de edificação vigentes do Decreto nº 6159/86. O terreno esteve, até 2013, no patrimônio do BANERJ, que deixou que ele fosse usado, pacificamente, pelo povo. Que bom, já que a origem do terreno era um bem da Cidade, que foi, na década de 1970 incorporado, como lastro financeiro, ao antigo Banco do Estado da Guanabara (BEG), em detrimento do seu interesse urbanístico coletivo.

No Direito, contudo, o registro imobiliário não é prova absoluta de uma propriedade (diz-se: juris et de jure). A propriedade imobiliária também pode mudar de dono pela usucapião. Ou seja, o fato de alguém ocupar, possuir e usar como sua propriedade alheia, de forma mansa e pacífica, por anos seguidos faz com que este possuidor adquira o bem, sem que caiba qualquer indenização ao ex-dono – chama-se prescrição aquisitiva, ou usucapião. Hoje, o novo Código Civil (art.1238) estabelece que este prazo é de 15 anos, reduzido para 10 anos quando o ocupante-possuidor nele tiver realizado “obras e serviços de caráter produtivo”.

Ora, desde o final dos anos 1970, no governo Klabin, a Cidade do Rio de Janeiro custeou o aterramento daquela área adjunta à Praça ex-Melvin Jones, pois o particular, então dono do terreno, havia deixado o local com grandes buracos que foram escavados, e abandonados, para a construção de enorme edificação então licenciada para o local. Contudo a empresa faliu, e desapareceu, abandonando o terreno, perdendo o prazo legal de eventual renovação da licença. Coube à Prefeitura cobrir o local com terra para evitar danos à saúde pública, ocasionados por verdadeiras piscinas de água parada. Leiam o ilustrativo artigo, publicado no O Fluminense, em 1973, ao final .

2 Sonia Rabello: Praça Mário Lago ou Buraco do Lume?

Obras abandonadas, com o Buraco do Lume tomado pela água – O Globo 21/07/1975

3 Sonia Rabello: Praça Mário Lago ou Buraco do Lume?

À esquerda, Buraco do Lume cercado por tapumes e a direita a praça urbanizada – Jornal do Brasil 14/08/1978

Posteriormente, em 1998, depois de mais de uma década de abandono do mesmo, o BANERJ tentou obter do Município uma indenização por desapropriação indireta do terreno, alegando que o Decreto nº 6159/86 lhe restringia o uso, e que o Município tinha transformado o local num jardim. (processo nº 0184570-90.1998.8.19.0001). Vejam o que diz a ementa do acordão que julgou esta ação judicial:

Apelação Cível. Ação objetivando Indenização por desapropriação indireta de terreno situado no centro da cidade, conhecido como “Buraco do Lume”, proposta pelo Banco do Estado do Rio de Janeiro em face do Município do Rio de Janeiro. Alegação de Decreto Municipal, desprovido de impessoalidade, abstração e generalidade, ao alterar os parâmetros de uso e ocupação do terreno, subtraiu o seu potencial econômico, e impôs restrição que configuraria interdição do uso da propriedade. Sentença que julga improcedente o pedido. Manutenção. Paralisadas as obras então realizadas no local, por cerca de dez anos, permaneceu o terreno abandonado, tornando-se insalubre, àquela altura um grande buraco e sem qualquer edificação, havendo o Município, a fim de preservar o meio ambiente e a saúde da população, promovido o aterramento do lugar, transformando-o em um jardim. Utilizou-se o Município de sua competência constitucional para promover o ade3quado ordenamento territorial, mediante o planejamento e controle do uso e da ocupação do solo urbano, inexistindo qualquer violação ao direito de propriedade, o qual não é ilimitado. Poder de polícia. Apelo desprovido. (grifei)

Hoje, o tamanho das árvores no local é a demonstração irrefutável do tempo decorrido desde então – quase quarenta e cinco anos de uso público ininterrupto do terreno como um logradouro público, com vultosos investimentos públicos de urbanização no local, realizados para o seu saneamento e manutenção.

Dever-se-ia, agora, desconsiderar todos estes fatos, e simplesmente tratar o terreno como um bem privado, como se ele tivesse sido mantido e cercado, desde sempre, pelo proprietário que ora se apresenta? Teria o proprietário direito de agora, passadas décadas, reivindicar esta propriedade, pretendendo usar um suposto gabarito extraordinário ilimitado (e milionário), dado para aquela área pelo chamado Reviver II? Teria sido o Decreto nº 6659/86 (Lei urbanística especial) revogado pela lei geral do Reviver II?

Portanto, a menos que esta posse, decorrente do uso comum público tenha sido tempestivamente contestada, e diretamente reivindicada, aquele terreno já teria se tornado, há muitos anos, um bem público, afetado fática e notoriamente ao uso comum do povo! E, neste caso, caberia à Prefeitura zelar e manter sob o seu domínio este patrimônio, especialmente se ele foi adquirido pelo uso público incontestável da população.

Vale acrescentar que, no Direito brasileiro, a propriedade imobiliária adquirida por usucapião, decorre, tão somente da comprovação do fato realizado (posse inconteste), e não de sentença judicial, ou mesmo de sua averbação registraria. Vejam o que explica o site do STJ sobre a matéria: Na fundamentação do REsp 1.818.564, o relator, ministro Moura Ribeiro, ressaltou que a possibilidade de registro da sentença declaratória da usucapião não é indispensável para o reconhecimento do direito material de propriedade, fundado na posse ad usucapionem e no decurso do tempo. (grifei)

E, é por isso que se diz que, quem adquiriu uma propriedade de outrem, baseado tão somente no Registro de Imóveis, sem ter tido o cuidado de verificar se o bem já não teria sido usucapido por terceiros, este comprador estaria, neste caso, adquirindo uma propriedade a non domino, ou seja, de um “não proprietário”, apesar do registro no nome do vendedor.

Registre-se também que não há qualquer impedimento legal, pelo contrário, de que um bem particular seja adquirido pelo Poder Público, por usucapião, – através do uso ininterrupto do mesmo -, especialmente quando esta posse é realizada pela população, que toma e usa o bem como um logradouro público. Este não seria o caso exato da Praça Mário Lago, agora abrangendo toda sua extensão fática, desde a Avenida Rio Branco até o Terminal Menezes Cortes?

A Prefeitura do Rio não deveria ignorar esta questão, sob pena de estar abrindo mão, graciosamente, de patrimônio público, o que é vedado por lei.

Finalmente, registre-se que a usucapião é um instituto secular, cuja legitimidade é, atualmente, reafirmada pelo princípio da função social da propriedade, preceito constitucional contido no art.5º, inciso XXIII da Constituição Federal. E este preceito impede que propriedades abandonadas e descuidadas por seus donos, perdurem como tal em seu patrimônio, em detrimento dos serviços que elas devem prestar à comunidade, à cidade e à sociedade.

Portanto, a Praça Mário Lago, em toda sua extensão fática, parece já ter sido conquistada, como um bem público, pelo uso comum do povo, podendo já ser, assim, do povo!

Ver artigo do Fluminense a seguir:

image 3 Sonia Rabello: Praça Mário Lago ou Buraco do Lume?

Sonia Rabello, Jurista, ex-procuradora-geral do Município do Rio de Janeiro e professora aposentada na FDir/UERJ (aposentada)

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5 COMENTÁRIOS

  1. Esta prefeitura é notável na reversão de praças e outros espaços em instalações municipais, até com utilidade, mas desconsiderando que imóveis próximos estão desocupados. Zona Norte e Jacarepaguá perderam várias praças para se tornar sede de GMRio, UPAs e Clinicas de Família, dentre outros, além das academias de rua, que embora meritórias pelo oferecimento de equipamentos a população, ganharam “administradores” que tornaram os espaços de uso específico e ocupação. Criança dificilmente tem vez nas praças de hoje. Decisões bastantes autoritárias, para dizer o mínimo desta administração que parece agradar, mas não entrega o que a cidade precisa. No Centro, essa discussão sobre a Praça Mário Lago ou Buraco do Lume deveria ser desnecessária. Hoje o Centro precisa é de demolição de prédios inúteis para remodelar o local, não de mais uma construção para competir com outras, sejam lojas, escritórios e até mesmo edifícios garagens como o Menezes Cortes, bastante subutilizado.

  2. Ainda hoje passei pelo pupular Buraco do Lume e ne lembrei desta polemica: publico ou privado? Vende ou vao vende? A praça e do povo ou nao e? Olhei para as arvores frondosas com seus troncos anadurecidos: entao, o dinheiro vai compra-las e transformar tudo em cimento e ferro ? Quantas pessoas usam aquele espaço para realizar seus lanches, intervalos entre um turno e outro…namorar? Nada e publico? Tudo tem que ter um final capitalista e lucrativo? Que cidade sem memoria!

  3. O único benefício que se poderia especular como positivo para a cidade e sua memória seria a extinção dessa praça fétida que leva o nome de um comunista dos mais abjetos e desprezíveis que Pindorama já viu!

    • Que comentario befadto, Bolsominion! A praça e do povo seja de esquerda ou de direita. Ou melhor: a praça e das arvores frondosas que favorecem um clima mais amenk entre os espigoes de cobcreto. Fui!

  4. Beleza, limpem pra tirar a catinga de fezes e urina, urbanizem novamente e “reeduquem” os trombadinhas. Todo mundo sabe que eles não ficam detidos…

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