Sonia – Sítio Burle Marx e Cinemateca: histórias conectadas, destinos diversos

Sonia Rabelo fala sobre a história similar do Sítio Burle Marx e da Cinemateca Brasileira, mas que acabaram caminhando de forma diferente

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Entrada do Sítio Roberto Burle Marx, em Barra de Guaratiba, Zona Oeste do Rio - Foto: Divulgação/Iphan

Era o ano de 1984, a então Fundação Nacional próMemória, criada em 1979, para dar suporte administrativo ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), fez a “incorporação” de duas entidades que já não aguentavam se manter: o sítio do arquiteto paisagista Burle Marx e a Cinemateca Brasileira. O objetivo era usar a flexibilidade e os recursos da Fundação próMemória para tentar preservar aqueles acervos ameaçados, viabilizando as suas existências e conservação.

Estes dois acervos – o sítio Burle Marx e a Cinemateca Brasileira – eram parte de um conjunto de outros acervos que foram, à época, “incorporados” e salvos pela ação da próMemória; como os Museus Castro Maya, no Rio de Janeiro, o Museu Lasar Segall em São Paulo, inúmeros fortes e prédios em todo Brasil – a exemplo do Paço Imperial na Praça XV, no Rio de Janeiro, que pertencia aos Correios e estava em estado lamentável de deterioração -, e até grandes museus nacionais, como o Museu de Belas Artes, o Museu Histórico Nacional e a Biblioteca Nacional. A lista era imensa.

O projeto da Fundação próMemória foi capitaneado pelo designer Aloísio Magalhães, um líder apaixonado pelo patrimônio histórico brasileiro, na linha iniciada por Mário de Andrade, Rodrigo Melo Franco e outros, e contou com a colaboração direta de grandes administradores como Irapoan Cavalcanti de Lyra e Armando Cunha[1].

Embora Aloísio Magalhães tenha morrido em 1982, com 57 anos, vítima de um acidente vascular cerebral, a força de suas ideias e projetos permaneceram e inspiraram a preservação do patrimônio nacional por décadas, viabilizada pela permanência, na instituição, de sua equipe de dirigentes.

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Flexibilidade – Tudo isto foi possível porque, antes ainda da Constituição de 1988, estas fundações tinham personalidade jurídica de direito privado, e atuavam com enorme flexibilidade institucional, ainda que supervisionadas pelo Poder Público e pelo Ministério Público. Ambos, a Cinemateca Brasileira e o Sítio Burle Marx, foram parar, em 1984, na próMemória, embora  com trajetos e destinos finais diferentes.

O Sítio Burle Marx pertencia a dois proprietários privados, Roberto e seu irmão Guilherme Burle Max.  Roberto, o paisagista, dizia: “vou morrer, mas quero que o meu sítio me sobreviva”. Mas, pela sofisticação da obra botânica e paisagística no local, sua manutenção era cara e inviável para um indivíduo. Daí, sua ideia de doá-lo ao Poder Público. 

Na época, a próMemória já era uma instituição confiável. Guilherme, irmão de Roberto, dizia que o generoso era o irmão e, por isso, a sua parte não seria doada. O jeito era comprá-la. E assim foi feito; após uma longa negociação e avaliações, foi realizada uma escritura pública de doação, compra e venda e outros pactos no 22º Cartório de Notas do Rio, entre os proprietários e a Fundação próMemória. Sim, porque Roberto estaria doando a sua parte com encargos e condições, como a de permanecer morando no local enquanto vivesse, de se manter como administrador do sítio, bem como de que fossem absorvidos, pela fundação, seus empregados especializados.

Tombamento federal – Tudo possível porque a fundação era “privada” e o negócio era de interesse público da preservação. O tombamento federal do sítio foi feito no mesmo ano, em 1984.  Este tombamento foi antecedido pelo inédito tombamento estadual, feito em 1983. Foi um negócio complicado, mas, quem diria, deu certo; e o sítio, que continuou até hoje sob a administração do IPHAN (a fundação próMemória foi extinta em 1990), foi mantido com zelo e muito cuidado, o que resultou, depois de 37 anos destas ações de sucesso, na sua inscrição como Patrimônio Mundial!

Sorte diversa teve a Cinemateca Brasileira, cujo propósito era o mesmo: dar, através da Fundação próMemória, o suporte administrativo, técnico e financeiro à sua preservação que se mostrava, então, recalcitrante.  Em 1984, da mesma forma que o sítio Burle Marx, foi feita a escritura pública de incorporação daquele bem e de todo seu acervo à próMemória. Porém, posteriormente, com as sucessivas reformas no Ministério da Cultura, e com a extinção da Fundação próMemória que veio a se transformar, em 1990 na autarquia IBPC (Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural), e este em IPHAN, a Cinemateca Brasileira saiu, em 2003, do âmbito da autarquia, passando a ser um órgão da administração direta da Secretaria de Áudio Visual do Ministério da Cultura. 

Sim, talvez devesse mesmo sair da tutela administrativa do IPHAN. Mas, como um órgão da administração direta, as dificuldades de administração e conservação de um acervo tão complexo se tornaram sem dúvida muito mais complexas, o que não justifica, de modo algum, o desleixo e a incompetência na administração para conservação de seu acervo tão significativo e importante; desleixo este que já vinha sendo identificado anos seguidos e que culminaram, nesta semana, na perda irreparável, por incêndio, de parte significativa deste patrimônio nacional.

Lição que podemos tirar

A preservação e conservação do patrimônio e da memória cultural e social do país podem ter ligação direta com a forma das instituições que as administram, bem como com a permanência e a expertise de seus funcionários e a constância dos projetos e recursos que lhe são dedicados. E, de nada adianta a profusão de projetos novos de centros culturais se nem conseguimos dar conta, de forma competente e constante, daquilo que nossos antecessores já preservaram e conservaram até nossos dias.

A perda da memória com o incêndio da Cinemateca Brasileira, assim como do Museu Nacional, é definitiva e desfalca o já impactado e empobrecido Brasil. Olho vivo na Biblioteca Nacional, no Arquivo Nacional, nos arquivos públicos dos Estados e Municípios e en otras cositas más, se não quisermos ficar ainda mais pobres.

E, quem sabe, cadeia para aqueles que por culpa, desídia ou omissão, roubaram, pelo fogo, nosso patrimônio.

[1] Tive a enorme satisfação de ter sido escolhida por Aloísio Magalhães para montar e administrar o Jurídico da nascente Fundação próMemória, viabilizando seus desafiadores e inovadores projetos de acolhimento desses acervos e instituições, bem como inovar nas formas e ações de preservação patrimonial dos bens nacionais tombados.

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1 COMENTÁRIO

  1. “E, quem sabe, cadeia para aqueles que por culpa, desídia ou omissão, roubaram, pelo fogo, nosso patrimônio.”

    Dona Sônia, a Constituição de 1988 tornou este Estado Brasileiro em refém de despesas obrigatórias sociais de todos os tipos – salários de funcionários públicos, pensões, aposentadorias compondo o maior naco destas despesas obrigatórias. As despesas obrigatórias hoje perfazem mais de 90% do orçamento federal. Resta menos de 10% do orçamento para despesas discricionárias. A lei manda cumprir o orçamento. Para isto, desde 1988, os impostos saíram da casa de 20% para 40% sobre a renda nacional para custear esse Estado gordão com serviços de nível péssimo.

    Se gastamos quase tudo em custeio, como iremos investir? Não tem como investir. Dinheiro não nasce em árvore. Então, sem manutenção, Museus e Cinematecas pegam fogo. Segue o jogo: a sociedade brasileira tem que decidir: 1) Cobra mais impostos 2) Resolve a estrutura dos servidores públicos que tudo devoram.

    Enquanto a sociedade não toma coragem de decidir, a “Constituição Cidadã” devora os pobres para bancar o pessoal dos três poderes. Reforma Administrativa JÁ!

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