Temos algo a comemorar?

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Eu queria tentar não escrever sobre o governo federal, mas é quase impossível deixar de lado o assunto, já que dia após dia, nosso presidente e seu séquito ministerial causa uma nova polêmica. Já estava com um belo texto preparado sobre as ironias desnecessárias e o desdém da família Bolsonaro para com as críticas fundamentadas e pertinentes do Presidente da Câmara de Deputados, Rodrigo Maia (que, por sinal, não segue minha visão política, mas independente disso, expressou um consenso inteligente). Entretanto, um outro tópico veio à tona e me motivou a reescrever esta coluna, que sai (quando dá) às sextas: a comemoração do golpe/revolução/movimento/[coloque aqui o que você pensa] de 1964.

Numa época de polarização e radicalização, trazer esse tema à discussão é uma atitude, no mínimo, ingênua. Mas o atual presidente está cheio de atitudes intempestivas e, é claro, teve que sinalizar a comemoração (ou rememoração, após duplipensar sua fala) desse evento da História brasileira. E por quê? O que há para se comemorar em tal data sem dividir o país e causar mais uma celeuma desnecessária?

Golpes, revoluções e outras tomadas de poder à força não são novidades em repúblicas latino-americanas como a nossa. Então, não há nada de inédito no que houve em 1964. Era uma tendência praticamente inevitável, pois num contexto de Guerra Fria, a América Latina toda se alinhava para conter o avanço do bloco soviético após a surpresa da Revolução Cubana. De forma muito pragmática, é possível dizer que um governo militar e ditatorial com apoio dos Estados Unidos era a regra – e não a exceção – na América Latina.

E como todo governo com supressão de direitos, nomeações a dedo e possibilidades reduzidas de escolhas populares, é claro, corre-se o risco de degenerar. E o governo militar degenerou, em vários aspectos, a despeito de terem tomado posturas desenvolvimentistas e também implementado medidas interessantes em outros campos. O problema é que, numa era de pós-verdade em que vivemos, é muito fácil reconstruir o passado de forma gloriosa (como já fizemos com vários outros episódios, como a ditadura de Vargas ou a Guerra do Paraguai) ou trata-lo de forma diabólica, sem enxergar seus méritos e aprender com seus erros.

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Os méritos existem. Durante o regime militar, o país apresentou momentos de crescimento econômico, e teve alguns índices melhor posicionados que durante a primeira década da redemocratização. Foi uma era de incentivo à ciência e tecnologia nacional, e execução de grandes obras de engenharia. Houve incentivo à indústria nacional e as próprias estatais se fortaleceram. Para muita gente, que não estava diretamente envolvida com a oposição ao governo, parecia haver mais oportunidades. É justamente por essa razão que o discurso de que era um tempo bom para quem não fosse “criminoso”, “guerrilheiro”, ou até mesmo “esquerdista”, encontra lugar entre certas pessoas. Ignorar os acertos do regime militar e continuar apregoando (como muitos colegas e a própria mídia fazem) que era uma era de total horror apenas reforça o rechaço de quem não se lembra dela assim.

O problema é que essa visão gloriosa do regime militar (que, ao que me parece, é a predileta do presidente e seus apoiadores) é discutível. A despeito do promissor milagre econômico, a crise do petróleo estagnou a economia brasileira por boa parte do período do regime. Grandes obras foram inauguradas, mas outras tornaram-se elefantes brancos que deixaram imensos passivos para o país, como a Transamazônica ou a usina nuclear de Angra. Não necessariamente a corrupção deixou de existir. Algumas das personagens mais escandalosas em termos de falcatruas surgiram, cresceram e se promoveram durante o regime militar. Alguns eram da ARENA, mas também havia os do MDB.

Além disso, as cidades brasileiras eram muito menores que hoje, as taxas de analfabetismo bem mais altas e a expectativa de vida razoavelmente menor. Não é possível comparar os sistemas de educação e saúde sem levar isso em conta. As escolas pioraram não porque os militares saíram do poder, mas porque não foi escalonado o investimento à medida que as cidades multiplicavam suas populações e o ensino era universalizado às camadas mais carentes. Os hospitais estão lotados porque não houve investimentos de porte para aumentar sua capacidade de atendimento a uma população maior, mais urbana e mais idosa. Escolas e hospitais eram melhores, em parte, não por conta do regime, e sim porque atendiam frações muito menores e mais selecionadas da população. Quem morava no campo e na favela dificilmente usava tais serviços.

E a criminalidade? É impossível discutir sobre criminalidade urbana no Brasil em termos temporais sem levar em consideração o impacto que o tráfico internacional de drogas teve nas últimas décadas. O crime hoje em dia foi imensamente potencializado pelos cartéis e facções criminosas que lucram com o tráfico de drogas. Tal cenário era incipiente nos anos 60 e 70. É como comparar maçãs com laranjas.

Nem tampouco houve real ameaça comunista. A desclassificação de arquivos da KGB demonstra que, para os soviéticos, o Brasil era um país muito grande e de difícil implementação. As poucas células paramilitares dispostas a realizar algum tipo de revolução no país eram ínfimas, minúsculas. Tivemos um presidente democraticamente eleito que era – no máximo – de centroesquerda, deposto por querer implementar algumas reformas sociais que vários países europeus capitalistas estavam realizando.

O que isso tudo quer dizer? Que se trata de uma quimera dizer que o governo militar era ótimo. Se houvessem continuado no poder, provavelmente estariam tendo que lidar com os mesmos problemas que as lideranças democráticas hoje lidam: orçamentos limitados, endividamento estatal, maior complexidade do crime, mercado financeiro voraz e todo um jogo de poder, corrupção e favorecimento tipicamente brasileiro que nenhum governo – ditatorial ou democrático – conseguiu eliminar por completo.

Mas ainda que tivesse sido uma era de grande desenvolvimento, não consigo compreender que alguém ache correto e prudente abdicar de direitos básicos em prol de um regime de governo. Porque foi isso que ocorreu. A população perdeu o direito de eleger vários de seus líderes. Perdeu o direito ao protesto caso discordasse do governo. Perdeu o direito à livre expressão, à opinião pública divergente, à liberdade artística e, em muitos casos infelizes, perdeu também o direito à integridade física.

Não que hoje não haja tortura e assassinatos cometidos pelo Estado. Essas coisas perduram e são sinais da ineficácia em implementar formas razoáveis de combater a criminalidade. Mas, àquela época, tais medidas eram validadas e institucionalizadas. Não cabia punição se descoberto. Era parte do métier de trabalho. De criminosos, pode-se esperar todo tipo de ações violentas, mas do Estado, não é possível conceber qualquer medida que vá além das punições previstas em lei. E o problema da tortura e punições de exceção é que dependem muito da discricionariedade de quem o faz. O que quer dizer que se tortura e mata a quem cometeu um crime, mas tambéma quem o torturador achou que cometeu um crime. Não há lei, não há processo legal. E nessa toada, foram torturadas não só as pessoas que jogaram bombas e pegaram em armas para fazer guerrilha, mas também manifestantes pacíficos, parentes (inclusive crianças) e outras pessoas completamente inocentes.

Não há, realmente, o que comemorar. Assim como tampouco há o que comemorar quanto a governos passados que foram corruptos, ineficientes ou uma combinação de ambos. Há muito o que aprender com o passado, até para evitar seus erros.Seja lá o que viermos a ser enquanto país, seja lá qual projeto político venhamos a escolher, que seja uma decisão democrática, consciente, livre e questionável. Sempre.

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Luiz Coelho é planejador urbano, sacerdote anglicano e artista visual. Tem formação em Engenharia Cartográfica (IME), mestrado em Informática (UFAM) e é doutorando em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ). Também é formado em Teologia pelo SETEK, com doutorado em liturgia por Sewanee: the University of the South. É servidor público municipal, atualmente lotado no Instituto Pereira Passos e serve a Paróquia Anglicana São Lucas, em Copacabana. É membro filiado ao PSOL.
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1 COMENTÁRIO

  1. Luiz Coelho, para quem tem um currículo tão extenso me impreciona com tanta bobagem escrita. Você deixa escancarada a sua preferência política quando ataca o governo militar apenas pelo que leu ou ouviu, mas não viveu aquela era de progresso, segurança e educação. Tínhamos crescimento em todas as áreas. Infelizmente os governos pós militares destruiram tudo. Como está a situação da educação, segurança, saúde, etc. etc.? E você que se acha tão inteligente o que faria se estivesse no lugar do meu PRESIDENTE? Meu PRESIDENTE sim, pois percebo pelo seu artiguinho que é anti BOLSONARO. Ele e a sua equipe escolhida a dedo com muita sabedoria em apenas 90 dias já conseguiu consertar muitas barbaridades que os governos de esquerda perpetraram. Me desculpe se estou sendo indelicada, mas na minha idade não preciso mais ficar “cheia de dedos”, como falávamos antigamente, mas peço um favor: DEIXEM O BOLSONARO TRABALHAR EM PAZ. Dêm a ele ao menos a metade do seu mandato para que ele é sua equipe mostrem para que vieram, então verão o Brasil, não mais emergente(do lamaçal), mas um país a passos firmes para se tornar uma potência mundial.

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