*Cônego Valtemario S. Frazão Jr.
Desde a última segunda-feira da Oitava de Páscoa, o mundo entrou em luto e clima de consternação. Não é exagerada tal afirmação, pois a morte do Papa Francisco causou grande comoção a todos os corações de boa vontade, independentemente de religiosidade. Até aqueles que não têm fé, lamentam e reconhecem a importância do legado de seu pontificado para a Igreja e o mundo.
Francisco, que em 7 de abril de 2014, ao comentar sobre sua primeira viagem internacional ao Rio de Janeiro por ocasião da Jornada Mundial da Juventude 2013, disse: “Porém, ao término daquela semana, voltando a Roma, cheio de saudades, dei-me conta de que os cariocas são uns ‘ladrões’! Sim, ‘ladrões’, pois roubaram o meu coração!”, mau sabia que, na verdade, ele começava a roubar o coração, não somente dos cariocas e demais brasileiros, mas o coração do mundo inteiro. Esta colocação carinhosa do Sumo Pontífice refletia sua personalidade bem-humorada e espirituosa, que cativou o mundo, desde os mais poderosos chefes de estado, que agora decretam luto oficial em suas nações, até os mais pobres, que ocuparam a centralidade do seu pontificado.
A cada momento da história, o Espírito Santo concede o Pontífice de que precisa a Igreja para o bem de toda a humanidade. Neste sentido, desde a escolha do nome, passando pelos seus atos de governo e estilo pessoal, Francisco foi um Papa apropriado a este começo de século, em que o mundo sente necessidade de pautar questões como: desigualdade social, corrupção, meio ambiente, espaço da mulher na sociedade, imigração, questões de gênero, paz entre as nações, dentre outras; mas carece de lideranças que possam apresentar reflexões e conduzir o debate de maneira razoável, sem condicionamentos ideológicos.
Francisco não era propriamente um homem intelectual. Mas um homem prático com incrível sensibilidade de coração às questões de nosso tempo. Talvez, porque ele mesmo tenha passado por experiências que o inseriram nestas questões. Nascido numa família de imigrantes italianos, Papa Francisco era oriundo de um país socialmente desigual e cheio de injustiças, em boa parte consequentes de um sistema político e financeiro corrupto, algo muito comum nos países da América Latina, o que torna a política destes países bastante instável e a sociedade extremamente desigual, em que alguns poucos desfrutam de enormes fortunas, enquanto a grande maioria da população vive de forma precária e injusta. E esta é apenas a ponta do iceberg de uma corrupção endêmica no continente latino-americano, que vigora e afeta amplamente as instituições. Bergoglio sentiu isto muito fortemente na Argentina: viveu os efeitos do peronismo e o peso do caudilhismo latino-americano, passou pelas ditaduras peronista e militar. De modo que toda esta realidade conturbada apelou ao seu coração de pastor tornando-o ainda mais próximo do povo sofrido. Nunca foi bispo palaciano, encastelado no palácio episcopal e distante da realidade de seus arquidiocesanos. Muito pelo contrário, era assíduo às comunidades da periferia de Buenos Aires, usava transporte público, muito facilmente era encontrado junto aos pobres. Talvez tenha sido esta rica experiência de encontro e proximidade que o levou a tanto insistir em expressões como “Igreja em saída”, “periferias existenciais” e “cultura do encontro”. Pois conheceu com propriedade as agruras do povo sofrido, assim como também as raízes de tantas formas de opressão e injustiças sociais.
Ainda como cardeal de Buenos Aires, em um livro seu de 2005, intitulado “Corrupção e Pecado”, Jorge Mario Bergoglio afirmou que “situação de pecado e estado de corrupção são duas realidades diferentes, embora intimamente entrelaçadas”. Mas aí ele explica que pecado se perdoa, ao passo que a corrupção não pode ser perdoada, pois diante de Deus misericordioso e sempre disposto a perdoar, a autossuficiência do corrupto se torna um bloqueio que o impede de se arrepender e pedir perdão a Deus.
Já Bispo de Roma, no prefácio da obra “Corrosão – Combater a Corrupção na Igreja e na Sociedade”, do Cardeal Turkson, Francisco escreveu muito assertivamente contra a corrupção, chegando a afirmar: “Um pecador pode pedir perdão, um corrupto esquece-se de pedi-lo. Por quê? Porque já não tem necessidade de ir longe, de procurar pistas para além de si mesmo; está cansado, mas saciado, cheio de si. Com efeito, a corrupção tem a sua origem num cansaço da transcendência, como a indiferença”.
Desde o início de seu pontificado, o Papa Francisco insistiu constantemente em abordar o tema da corrupção, não perdendo uma única oportunidade de fazê-lo, como o fez em um tweet seu do dia 09/12/2019, Dia Internacional Contra a Corrupção, em que ele afirmou: “A corrupção degrada a dignidade da pessoa e destrói bons e belos ideais. A sociedade é chamada a se comprometer especificamente a combater o câncer da corrupção que, com a ilusão de ganhos rápidos e fáceis, realmente empobrece a todos”.
Todavia, muito lúcido e sem querer tapar o sol com a peneira, Papa Francisco sempre foi muito consciente de que a corrupção não está apenas fora da Igreja, mas nela se infiltra da forma mais sorrateira, apodrecendo corações e matando a fé. Talvez Francisco tenha considerado a corrupção como a mais grave chaga da Igreja, até mais que os escândalos de abusos sexuais, também monstruosos e inadmissíveis. Pois, “a corrupção substitui o bem comum por um interesse particular que contamina toda a perspectiva geral. Ela nasce de um coração corrupto e é a pior chaga social, porque gera gravíssimos problemas e crimes que envolvem todos” (in Corrosão – Combater a Corrupção na Igreja e na Sociedade). Ainda no referido prefácio da obra do Cardeal Turkson, o Santo Padre recorda a afirmação de Henri de Lubac, segundo a qual, o maior perigo para a Igreja é a mundanidade espiritual, portanto, a corrupção, que é mais desastrosa que a lepra infame.
De fato, não há como negar o que foi acima exposto. A corrupção na Igreja é a mundanidade espiritual, que gera hipocrisia, indiferença, insensibilidade para com quem mais sofre e até a falta de fé. Consequências gravíssimas, criminosas que expõem a degradação de um coração corrompido pelo dinheiro e pelo poder.
Entretanto, o Papa Francisco não ficava apenas nas duras críticas e condenações à corrupção. É dele mesmo que vem o exemplo de uma vida simples e abnegada. E ainda a determinação de normas concretas e precisas que impõem um forte combate à corrupção na Igreja, sendo intolerante e até mesmo implacável com atos de corrupção, como desvios e má utilização dos recursos eclesiásticos. Haja vista o expressivo número de bispos e de até cardeais destituídos de seus ofícios, ou pelo menos levados a renunciá-los, para o bem da Igreja.
Francisco entra para história como um Papa grande, que se voltou com radical dedicação para a cura de escandalosas chagas internas da Igreja, como corrupção, carreirismo e abusos sexuais; sem, contudo descurar questões que mexem com a vida de toda a humanidade, como meio ambiente, imigração, paz mundial, desigualdade social, dentre tantas outras. Um pai espiritual presente e atuante na vida de todos aqueles que se deixaram roubar o coração.
Que o Senhor ilumine os cardeais que elegerão um novo Romano Pontífice nos próximos dias, a fim de que, dóceis às inspirações divinas, elejam aquele que o Espírito Santo quer para a Igreja e o mundo de hoje.
* Cônego Valtemario S. Frazão Jr. está à frente da Basílica de Nossa Senhora de Lourdes, localizada no bairro de Vila Isabel, na Zona Norte fluminense, e escreve sobre cristianismo no jornal da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro (ArqRio).