William Bittar: As torres e outros elementos medievais nas Igrejas Católicas do Rio

Arquiteto William Bittar fala sobre as Igrejas Católicas do Rio, algumas com grande qualidade artística e arquitetônica

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Outeiro da Glória visto do Parque do Flamengo - Foto: Alexandre Macieira | Riotur

A cidade do Rio de Janeiro, segundo a Arquidiocese de São Sebastião, conta, em 2022, com 282 paróquias e 1075 locais de culto, distribuídos entre basílicas, santuários, igrejas e capelas, além da Catedral Metropolitana, para atender cerca de 3.300.000 católicos apostólicos romanos, ou seja, 53% da população, segundo o censo de 2010.

A opção aqui pelos templos católicos não indica qualquer preferência ou rejeição por qualquer crença. Historicamente trata da maior concentração de devotos, desde sua implementação na cidade, quando da sua fundação em 1565, com uma modesta capela dedicada ao padroeiro São Sebastião, à beira-mar.

Além disso, pelos séculos subsequentes, até os oitocentos, qualquer outro culto era proibido ou perseguido pelo poder constituído, situação que só arrefeceu durante o período imperial.

Mesmo assim, a República, que separou Igreja e Estado com a Constituição de 1891, promoveu perseguições religiosas, principalmente àquelas de matrizes africanas, que eram associadas à bruxaria ou feitiçaria, tratando seus seguidores de forma medieval.

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A cidade do Rio de Janeiro, que se tornou capital do vice-reino em 1763, manteve seu papel de destaque nacional pelos duzentos anos seguintes, estremecido quando da transferência da sede do poder para Brasília, em 1960.

Durante todo este período, incluindo os dois séculos anteriores a 1763, a cidade que nunca foi vila assistiu à construção de muitos edifícios católicos, alguns deles de grande qualidade artística e arquitetônica, constituindo um notável acervo do período colonial ou de importância histórica, como a primeira Sé, devotada a São Sebastião, demolida quando do arrasamento do Morro do Castelo na década de 1920.

Estão entre tantos, obras como o Mosteiro de São Bento, a igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, o conjunto do Carmo, este muito modificado, que já abrigou inclusive a Capela Imperial e a Catedral Metropolitana, até 1976, quando foi transferida para seu primeiro edifício projetado para este fim, na esplanada de Santo Antônio.

A presença de exemplares coloniais é muito ampla, desde modestas capelas, como de Nossa Senhora da Cabeça, à rua Faro, no Jardim Botânico, até o conjunto conventual de Santo Antônio, no largo da Carioca, ambos do início do século XVII.

Após a chegada da Corte portuguesa, em 1808, a construção de novos templos assistiu a um processo de estagnação. Afinal, o conjunto edificado, responsável inclusive por sediar freguesias, era numérica e geograficamente suficiente para atender aos reinóis e àqueles da terra.

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Nossa Senhora da Glória no Largo do Machado, Foto: Google Street View

Até meados do século XIX, poucas igrejas foram construídas, destaque para o templo de Nossa Senhora da Glória, no largo do Machado, que incorporava a tradição neoclássica em sua fachada, à feição da igreja La Madeleine, em Paris, ou da anglicana de Saint Martin-in-the-Fields, em Londres.

Na Europa, por influência do Ecletismo e uma busca romântica de formas do passado, houve uma corrente arquitetônica que podemos denominar de funcionalismo tipológico.  Devido às pesquisas enciclopédicas e ao Iluminismo dos setecentos, alguns artistas e arquitetos procuraram associar a função de uma edificação a referências formais resgatadas da História.

Dessa forma, muitos novos edifícios apresentavam uma “arquitetura falante”, revelando ao usuário ou à cidade que atividade abrigava: o repertório clássico estava associado ao uso administrativo; o barroco, aos espaços de lazer; o mourisco, muitas vezes aos institutos de pesquisa e conhecimento e a linguagem medieval (românico ou gótico) era destinada aos templos, como a icônica Catedral Sr. Patrick, em Nova York, de 1879.

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Catedral São Pedro Alcântara – Foto: Rodrigo Soldon

Acompanhando essa tendência, o Império brasileiro iria adotar o neogótico inclusive para a Catedral São Pedro Alcântara, em Petrópolis, projetada por F. Caminhoá em 1884, templo católico que assistiria, muito em breve, à construção vizinha da Igreja Evangélica da Confissão Luterana, que incorporou o mesmo repertório em 1903.

Esta linguagem arquitetônica se expandiu por todo o território nacional desde final dos oitocentos até as primeiras décadas do século XX, tanto em exemplares de concepção erudita, muitos deles matrizes de capitais brasileiras, a Sé de São Paulo, por exemplo, como também em templos mais simples, cuja arquitetura incorporou alguns elementos goticizantes em versões populares ou até mesmo estilizadas.

Na cidade do Rio de Janeiro, um exemplar relevante é a igreja da Imaculada Conceição, na Praia de Botafogo, de 1886, cujo projeto fora idealizado pelo Padre Julio Clevelin, a quem é também atribuído a igreja neogótica do Colégio do Caraça, em Minas Gerais.

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Imaculada Conceição, na Praia de Botafogo – Foto: Blog O Bom do Rio

Possivelmente a presença da torre foi fundamental para adoção deste partido arquitetônico por diversas outras igrejas católicas distribuídas pelos bairros do Rio. Templos protestantes também incorporaram a linguagem, como ocorreu com a Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, próxima à Praça Tiradentes, projetada pelo arquiteto Ascânio Viana, em 1926, concluída nas décadas seguintes.

Por toda a cidade, lá estão torres ou fachadas com influência medieval: Nossa Senhora da Paz, em Ipanema; a Catedral Metodista do Rio de Janeiro, no Catete, com sua fachada românica; igreja do Sagrado Coração de Jesus, na Glória; Santa Tereza de Jesus, em Santa Tereza; Santuário de Nossa Senhora da Salete, no Catumbi; São Joaquim, no Estácio; Divino Espírito Santo e a Basílica Nossa Senhora de Lourdes, ambas em Vila Isabel; Santo Afonso e Sagrados Corações, estas duas na Tijuca; a bucólica capela de Nossa Senhora da Luz, no Alto da Boa Vista, entre outras de composição mais simples ou estilizada.

As Igrejas do Subúrbio do Rio de Janeiro

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Imagem meramente ilustrativa da Basílica Imaculado Coração de Maria, no Méier – Foto: Cleomir Tavares/Diário do Rio

O percurso ferroviário da cidade revela a importância desta influência arquitetônica gótica ou românica nos edifícios religiosos suburbanos.  Da janela do trem, diversas torres rompem a paisagem horizontal dos bairros da Central ou Leopoldina e se apresentam aos olhares curiosos dos passageiros: no Méier, com influência moçárabe, a Basílica do Imaculado Coração de Maria; Nossa Senhora da Conceição e São José, no Engenho de Dentro; São Pedro Apóstolo, no Encantado; Divino Salvador, em Piedade; Santo Sepulcro, em Madureira; Nossa Senhora de Bonsucesso, em Bonsucesso; Santa Cecília, em Brás de Pina, a maioria construída entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Destaque para a Igreja Santuário de Nossa Senhora da Penha, por sua implantação privilegiada, no alto de um penhasco, com suas torres neogóticas visíveis de diversos pontos da Leopoldina e até mesmo da Baixada Fluminense. Abriga uma tradicional festa suburbana nos meses de outubro, quando o divino e o profano atuam na comunhão dos devotos, alguns a subir de joelhos sua escadaria escavada na rocha, empunhando seus ex-votos como testemunho das graças alcançadas.

A década de 1930 assistiu à incorporação do repertório Art-déco, uma transição para a linguagem modernista. Originalmente decorativo, a representação déco foi utilizada em templos mais recentes, como a igreja de Santa Terezinha do Menino Jesus, em Botafogo, de Archimedes Memoria, um dos mais importantes arquitetos das primeiras décadas do século XX ou a igreja do Santíssimo Sacramento, no Flamengo, projetada pelo arquiteto francês Henri Sajous, inaugurada em 1945. Ambas estilizam o repertório gótico, mas filiação é perceptível, principalmente porque lá estão as torres, símbolo maior de ascensão pela verticalidade.

Machado de Assis, em seu Memorial de Aires, criticava uma igreja sem torre, se referindo à matriz de Nossa Senhora da Glória, do Largo do Machado, pois alguns defenderam como necessária, já que não parecia um templo católico.

As torres, rasgando a horizontalidade das vilas e cidades desde a Idade Média, se materializaram no imaginário coletivo. Ostentavam a própria identidade do edifício, revelando sua função primordial, justificando o apreço por sua utilização

Mas principalmente poderiam representar o caminho dos céus, a aproximação com o divino, a fusão material e mística presente na obra arquitetônica, monumento presente nas ruas da cidade, assinalando sua importância simbólica aos olhos da população.

Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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1 COMENTÁRIO

  1. Excelente texto. Parabéns!
    Mas, permita-me fazer uma correção: a Paróquia citada com o nome de Santíssimo Sacramento, no Flamengo na verdade se chama Santíssima Trindade

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