William Bittar – Malhação do Judas: uma tradição em extinção no Rio

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre tradição da Malhação de Judas

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Jean-Baptiste Debret

Sábado de Aleluia! Assim como as festividades do Natal, as celebrações da Semana Santa, com exceção para os mais devotos, esquecem o protagonista. No Natal, a busca de presentes e mantimentos para o preparo da ceia, sem esquecer a bebida farta. Na Semana Santa, a corrida pelos ovos de chocolate e carne, se o orçamento permitir, para o churrasco dominical.

Talvez esquecido em alguma árvore ou poste de um bairro suburbano ou de uma cidade interiorana esteja dependurado um boneco, uma incógnita para muitos. Afinal, a tradição da Malhação de Judas está cada vez mais rara e provavelmente condenada pelos politicamente corretos, pois sugere muita violência…

Esta celebração originalmente indissociável do Sábado de Aleluia, presente em muitos países, estava presente para católicos e ortodoxos ibéricos, chegando à América Latina na colonização lusa e hispânica.

Para os neófitos, a tradição consiste em confeccionar um boneco, quase um espantalho, no tamanho de uma figura humana, pendurá-lo num poste ou árvore, aguardando o horário definido (dez horas para alguns, meio-dia para outros) para seu “linchamento” e posterior queimação. Antes disso, era costume proceder-se o julgamento de Judas, sua condenação para posterior execução. Algumas vezes lia-se o “testamento” do condenado, que poderia incluir sátiras a políticos, figuras públicas ou pessoas da região, prática substituída pela colocação de cartazes identificadores. Finalmente, consumava-se a punição de Judas Iscariotes.

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Pesquisadores indicam que a origem desta manifestação pode estar associada a alguns rituais pagãos da antiguidade, quando se queimava um boneco representante de uma divindade da vegetação. O fogo renovava a vida renascida do inverno e garantiria boas colheitas na primavera que chegava. 

Com a cristianização do Ocidente e os autos do Tribunal do Santo Ofício, havia uma prática inquisitorial denominada “queimação em efígie”. Aquele condenado, morto antes da aplicação da pena, por vezes devido às torturas infligidas, era representado por um boneco em tamanho natural, queimado em praça pública, que pode ter reforçado a tradição.

No Brasil, a Malhação do Judas, espetáculo predominantemente urbano, transformou-se em evento de grande apelo popular, conforme retratado e comentado por Debret durante as primeiras décadas do século XIX no Rio de Janeiro: põe em polvorosa toda a população do Rio de Janeiro entusiasmada por ver os pedaços inflamados desse apóstolo perverso espalhados pelo ar com a explosão das bombas e logo consumidos entre os vivas da multidão! Cena que se repete no mesmo instante em quase todas as casas da cidade(…) Uma árvore nova trazida da floresta faz as vezes de uma forca económica, e o povo do bairro sente-se satisfeito. Observe-se que é de rigor fazerem-se esses preparativos durante a noite, a fim de estar tudo pronto pela manhã.

No século XX, a maioria das crianças católicas, principalmente nos bairros suburbanos, acompanhavam os preparativos do final da Quaresma, raramente compreendendo a essência daqueles rituais promovidos pelas avós.

Tudo começava no Domingo de Ramos, com a coleta dos “ramos verdes” para levar à missa e receber a devida bênção. Após, as palhas bentas eram depositadas nos altares domésticos e seriam queimadas em noites de temporais, com interjeições aos santos correspondentes: – Santa Bárbara, São Jerônimo, faz passar esse trovão!

Anos depois compreendi que minha avó, católica praticante, estava a invocar entidades do sincretismo afro, Iansã e Xangô, respectivamente, energias do relâmpago e do trovão. Estava ali o amálgama involuntário da cultura brasileira.

Só recentemente, assistindo a um depoimento de um padre do Vale do Paraíba, aprendi que os ramos são guardados para tornarem-se a cinza da Quarta-feira do ano seguinte.

Chegava a Semana Santa e acirravam-se as restrições com jejuns leves até a Sexta Feira da Paixão, com proibição de ouvir música “barulhenta”, comer carne vermelha, falar palavrões, fazer a barba e até mesmo tomar banho, que para muitas crianças era um presente. O rádio apresentava programação especial enquanto a televisão, em seus primórdios com poucas emissoras, exibia alguma versão antiga, preto e branco, da Vida de Cristo, também presente em muitos cinemas de bairro, que inevitavelmente éramos obrigados a assistir e rever, ano após ano, até que novas surgissem.

Após este período de contrição, aproximavam-se as comemorações: a malhação do Judas no sábado e o domingo de Páscoa, para júbilo do cristianismo e da criançada. Após a celebração do sacrifício e ressurreição de Jesus, sobrevinha o almoço e a distribuição dos chocolates ou até mesmo de ovos de galinha coloridos. 

No entanto, segundo o Dicionário Histórico de Religiões, não existe nenhum registro da Páscoa na época dos apóstolos de Jesus.  O Concílio Ecumênico de Nicéia, em 325, decidiu que esta celebração deveria ocorrer no primeiro domingo após a lua cheia que ocorre depois do equinócio de primavera ou outono, conforme o hemisfério, portanto uma data móvel.

Voltemos ao sábado, quando a criançada acordava curiosa para procurar o Judas do ano. Encobertos pelo silêncio da noite santa, pois não havia atividades, festas ou bailes, a rapaziada preparava o boneco ou boneca, com os nomes das vítimas públicas ou locais. Muitas e muitas vezes era um bom motivo para pendengas na vizinhança, quase à feição do Veneno da Madrugada, de Garcia Marquez. Não raramente eram retirados dos postes, às vezes com auxílio da polícia, mas misteriosamente reapareciam em outro local.

Assim como Debret já havia registrado, a Malhação do Judas era um espetáculo em alguns bairros e até mesmo ponto de atração, como ocorria no antigo Largo da Cancela, em São Cristóvão, onde muitos bonecos pendiam dos pilares de sustentação da cobertura que lá havia.

A comemoração esquecia a vítima original e tornava-se um processo catártico, inconscientemente associado ao rito de purificação pagão, que expurgava os males para uma colheita próspera, para desespero daqueles que apresentaram motivos de sobra para constar nos cartazes daquela figura.

Assim com outros rituais ou folguedos, a cidade contemporânea, ainda que muito maior e bem informada, não se permite preservar manifestações populares, descartadas ou convertidas em cancelamentos digitais. Ali havia o convívio, a ação e reação diretas, o olho no olho, os cheiros, sons, tatos, as trocas tão essenciais para a preservação da vida e da memória muito além das lembranças das gerações que passaram e tiveram a irrecuperável oportunidade de, numa manhã de Sábado de Aleluia, confeccionar, pendurar, malhar e queimar seus judas pessoais.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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1 COMENTÁRIO

  1. Boa redação.Oportuna,digo.
    A bem da verdade, vemos muitas das nossas tradições culturais extintas. Podemos incluir a distribuição dos doces de Cosme e Damião a Folia de Reis, que saía na noite de Natal e culminava no 6 de janeiro, até os ” despachos nas encruzilhadas. Particularmente atribuo esse ” encerramento festivo” ,ao aumento do povo evangélico. Com isso a extinção dos terreiros, maiores incentivadores das citadas tradições. Ate as procissões sacras já rarearam. Boas recordações.

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