William Bittar: Os passos de Tiradentes no Rio de Janeiro

Enquanto o Rio de Janeiro assiste a um carnaval fora de época, esquece que o dia 21 de abril registra a execução de um personagem fundamental da História Nacional

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Foto: Reprodução

Enquanto o Rio de Janeiro assiste a um carnaval por decreto,  fora de época, esquece que o dia 21 de abril registra a execução de um personagem fundamental da História Nacional: o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tira-dentes, originalmente assim grafado.

Condenado por traição à Coroa Portuguesa, abandonado por seus companheiros de Inconfidência, Joaquim José marcou sua presença nas lutas contra a exploração dos poderosos sobre o povo.

Tiradentes nasceu em 1746, na Fazenda do Pombal, território entre São João D’El Rey e São José d’El Rey, que depois receberia seu apelido como topônimo. Mesmo contando com situação financeira estável, procurou constantemente uma profissão que atendesse seu temperamento inquieto e curiosidade incessante. Assim, trabalhou como fazendeiro na propriedade dos pais, foi caixeiro viajante, tropeiro, dentista amador (ofício que aprendeu com o padrinho e lhe valeu o apelido), estudioso de plantas medicinais, técnico em reconhecimento de terrenos para mineração e chegou a alferes da cavalaria de Dragões Reais de Minas, jamais promovido, gerando grande insatisfação com a Coroa.

Viajante constante, conhecia o interior das Gerais e os caminhos que ligavam as minas à sede do Vice-Reino, no Rio de Janeiro, como a Estrada Real, em contato constante com a população interiorana, facilitando seu papel de propagador das ideias libertárias, devido ainda, à sua capacidade de comunicação.

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Estabelecido em Vila Rica, morava na Rua São José com sua companheira Antonia Maria do Espírito Santo e a filha do casal, Joaquina. Andando pelas ladeiras e tabernas da vila, conheceu os demais participantes da Inconfidência, aqueles que o entregaram durante o julgamento, entre outros motivos, devido à sua popularidade e intenção de trazer o povo para o movimento.

Após sua execução, cumprindo a sentença, a casa foi demolida em 1792, o terreno salgado, assim permanecendo desocupado até anos mais tarde, quando foi construído um sobrado no local.

Com os acontecimentos de março de 1789, após a delação de Silvério dos Reis, Tiradentes foi preso em 10 de maio, num sótão à Rua dos Latoeiros, depois Rua Gonçalves Dias, no Rio de Janeiro, de onde foi levado para a prisão na Ilha das Cobras, nas imediações da Praça XV, posteriormente cedida à Marinha. Ali permaneceu praticamente incomunicável, sem assistência, em uma reduzida cela, com a cabeça raspada para evitar piolhos e uma rota camisa de onze varas, que possivelmente o acompanhou ao patíbulo.

Três anos depois, em 17 de abril de 1792, foi transferido para a Cadeia da Relação, ou Cadeia Velha, localizada onde foi construído o Palácio Tiradentes, em 1922, para a abrigar a Câmara dos Deputados. No oratório da cadeia os acusados ouviram a condenação à morte dos onze principais réus. No entanto, logo após, estranhamente a pena para dez deles foi comutada em degredo perpétuo em colônias portuguesas na África, provavelmente uma medida para revelar a clemência da Rainha D. Maria e agradar às populações em ebulição do Rio e de Minas. Em Vila Rica, em 1789, Cláudio Manoel da Costa morrera no cárcere.

Em 20 de abril, foi confirmada a pena de morte para o alferes: Que se execute inteiramente a pena da sentença no infame réu Joaquim José da Silva Xavier, por ser o único que na dita carta se fez indigno da real piedade da mesma senhora, complementada em 21 de abril de 1792, com baraço e pregão seja levado pelas ruas públicas desta Cidade ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levada a Vila Rica, donde será conservada em poste alto junto ao lugar da sua habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos e pregados em iguais postes pela estrada de Minas nos lugares mais públicos, principalmente no da Varginha e Sebollas; que a casa da sua habitação seja arrasada, e salgada e no meio de suas ruínas levantado um padrão em que se conserve para a posteridade a memória de tão abominável Réu, e delito e que ficando infame para seus filhos, e netos lhe sejam confiscados seus bens para a Coroa e Câmara Real. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1792, Eu, o desembargador Francisco Luiz Álvares da Rocha, Escrivão da Comissão que o escrevi. 

Às oito horas da manhã daquele sábado ensolarado, o réu saiu da cadeia escoltado pela Guarda Real e seguiu caminhando à Praça da Forca, remodelada para a execução, com um patíbulo erguido quatro metros acima do solo para que um público maior pudesse assistir ao enforcamento.

Este percurso ainda provoca divergências entre os historiadores, principalmente devido às sucessivas alterações no sítio central da Cidade, incluindo seus limites. A versão mais aceita inicia a caminhada a partir da Cadeia Velha, seguindo pela Rua da Cadeia (depois Rua da Assembleia) em direção ao Largo da Carioca, aos pés do Convento de Santo Antônio, onde começava a Rua do Piolho (depois Rua da Carioca). O cortejo continuou até o Campo de São Domingos ou da Lampadosa (depois Praça Tiradentes), dobrando à direita, na direção da Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa, cujo templo original foi destruído por um incêndio, substituído por outro, na década de 1930, com repertório neocolonial luso-brasileiro, projetado pelos arquitetos Sá e Candiota. Na porta da antiga ermida, Tiradentes teria feito suas derradeiras preces antes da execução.

Às doze horas do dia 21 de abril de 1792, após cerca de três horas de cortejo, Joaquim José da Silva Xavier galgou ou 21 degraus do cadafalso erguido provavelmente onde se encontra a Escola Municipal Tiradentes, à Rua Visconde do Rio Branco, 48. Ali o réu foi enforcado pelo carrasco Jerônimo Capitânia, que trocou sua pena de morte por prisão perpétua e serviços prestados ao Vice-Reino. O corpo foi esquartejado e a cabeça seguiu para Vila Rica, onde ficou exposta numa gaiola, salgada, no centro da Praça de Santa Quitéria (depois Praça Tiradentes), onde deveria permanecer “até que o tempo a consuma”, porém, na primeira noite, o troféu da Coroa desapareceu e nunca mais foi encontrado. Outros despojos seguiram para locais por onde havia passado, como Sebollas, no município de Paraíba do Sul, em cuja igreja de Santana estão sepultados alguns restos mortais.

Decorrido mais de século, foram os positivistas que procuraram associar o alferes à identidade republicana nacional, resgatando seus ideais e sua participação na Inconfidência Mineira. Provavelmente nessa ocasião iniciou-se a elaboração de uma efígie para Joaquim José, muito diferente daquela real, que a história poderia registrar: o condenado esquálido, com cabeça raspada e um surrado camisolão, padrão nas cadeias do Vice-reino, um traidor tão perigoso para a metrópole lusa, foi idealizado com cabelos e barbas longos e negros, postura ereta, que muitos associam à iconografia de Jesus Cristo, ideal para angariar a simpatia de futuros adeptos. O quadro de Pedro Américo, de 1893, Tiradentes Esquartejado, muito contribuiu para exaltar o martírio do herói que surgia.

Duzentos de trinta anos decorridos daquele fatídico 21 de abril. Aquela cidade colonial se transformou, assim como seus logradouros, personagens e heróis. As ruas pelas quais Joaquim José caminhou na direção do patíbulo foram pavimentadas; as construções que testemunharam o cortejo já não existem, sequer a igreja original da Lampadosa; o local da forca é impreciso. 

Entretanto, ao ouvir os ecos deste passado como instrumento de aprendizado do presente para construir um futuro, é impossível esquecer que há mais de dois séculos existiram costas, gonzagas, alvarengas, menezes, silvérios, mas um único Alferes.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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1 COMENTÁRIO

  1. É desalentador um país que não honra a memória de um genuíno mártir, que não preserva a própria história.
    Obrigada pelo texto, prof° William.

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