William Bittar – Parque Shangai: um Rio em outro ritmo

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre esse icônico lugar da cidade

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Os parques de diversões, equipamento que encanta adultos e crianças, é um produto da sociedade industrial, criado para proporcionar entretenimento e lazer para as populações urbanas. Provavelmente derivaram das grandes feiras internacionais, com suas exposições de novidades, tornando-se uma versão moderna do pão e circo romano.

Com a mecanização de equipamentos na segunda metade dos oitocentos, surgiram brinquedos em movimento, como o carrossel a vapor, inicialmente para adultos. Os trabalhadores poderiam gastar algum dinheiro para distração, num ambiente mais econômico do que as feiras mundiais, palcos de grandes negócios, eventos para os mais abastados.

As estâncias americanas ou inglesas de diversão, populares pelo peculiar programa que abrangia viagens de um dia ou fim de semana, evoluíram para o parque moderno, como em Coney Island, nos Estados Unidos, que já foi o maior do mundo, cenário de muitas produções cinematográficas como Wonder Wheel, de Woody Allen, em 2017.

Proliferaram parques itinerantes, à feição dos circos, surgiram parques temáticos, como a própria Disneylândia, e o modelo se espraiou por todo o mundo, em muitas ocasiões integrados às feiras de curiosidades e espetáculos de mágica.

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O Parque Shangai é um famoso espaço de diversões na zona da Leopoldina, bairro da Penha, no sopé do penhasco que abriga a Basílica Santuário de Nossa Senhora da Penha, referência visual, religiosa e afetiva para muitos moradores da cidade do Rio de Janeiro. Desperta, ainda, a curiosidade daqueles que avistam a igreja destacada na paisagem com suas torres neogóticas e sua fachada principal voltada para o nascer do sol.

A tradição oral revela que o nome seria uma referência à cidade chinesa de Xangai, com suas formas e cores do extremo oriente, assim como o Parque Tivoli, em Copenhague, este um dos mais antigos do mundo, fundado em 1843. O cartaz ainda mantém caracteres chineses, bem diferente das grandes letras iluminadas no cair da tarde, voltadas para o Largo da Penha.

Originalmente um parque itinerante, criado em 1919, estabeleceu-se, em 1934,  na área do Aterro do Calabouço, próximo ao terreno onde seria construído o aeroporto Santos Dumont. Com o pleno funcionamento do terminal aeroviário, o parque se transferiu para a Quinta da Boa Vista na década de 1940, ali permanecendo por mais de vinte anos.

Surgia o Estado da Guanabara, em 1960. Durante o governo Carlos Lacerda, o Rio de Janeiro recebeu grandes benfeitorias, incluindo propostas urbanas como o plano Doxiadis, abertura de túneis, viadutos, ampliação da estação de tratamento de água do Guandu, inauguração do Parque do Flamengo. No entanto, o governador também se envolveu em questões polêmicas como a erradicação de favelas da zona sul, desaparecimento de mendigos das ruas, extinção dos bondes e também a retirada compulsória do Parque Shangai da Quinta, após intensa campanha de alguns jornais.

Naquele espaço ecoava a algazarra alegre das crianças em seus famosos brinquedos como o Trem Fantasma, o Chicote Americano, a Roda Gigante, o Carrossel, a Autopista ou bate-bate, além da impressionante Montanha Russa, que desafiava os frequentadores com sua altura e movimentos bruscos e surpreendentes. Naquela área, após a saída do Shangai, foi montada uma visitadíssima exposição financiada pela “Aliança para o Progresso” que surpreendia o público com as novidades norte-americanas, como a televisão colorida, com sua imagem péssima e borrada, ou brinquedos de pilha ou corda, que faziam brilhar os olhos da gurizada. Uma sutil iniciativa que pretendia defender as Américas dos ventos do socialismo, principalmente após a Revolução Cubana.

Saindo da Quinta da Boa Vista, em 1966 o parque se estabeleceu na Penha, recuperando alguns de seus melhores momentos da década anterior. Novas atrações, brinquedos mais modernos foram gradativamente acrescentados, como Bufalo, Interprise, El Condor, Dakkar, Dumbo, Xícara, Barca Grande, Minhocão, mas poucos visitantes perceberam a sutileza do “Dragão”, referência direta à cultura chinesa.

A música retornou às matinês, os alto-falantes dedicavam melodias às meninas que passeavam com seus algodões doces ou pipocas. Balões coloridos despertavam a curiosidade e o desejo das crianças; maçãs-do-amor, tiro ao alvo para conseguir um delicado bicho de pelúcia como presente. Enfim, uma volta na roda-gigante, onde a jovem nervosa tomava as mãos de seu companheiro de banco que balançava no ar. Depois, os casais mais atrevidos entravam nos carros do trem-fantasma… Talvez ali, no escuro, fosse possível um beijo furtivo entre os sustos que disparavam os corações e tiravam o ar. Um sublime momento com o mais oportuno cenário do acender das luzes do parque e a silhueta da igreja ao fundo, sobre a rocha, por vezes ao som da Ave-Maria e o tanger dos sinos.

O Parque Shangai era um programa para todos, principalmente aos domingos: famílias, crianças, adolescentes, jovens… Cada tribo com suas intenções e desejos, possivelmente realizados naquele ambiente mágico de sons e luzes.

Nos meses de outubro, a popular Festa da Penha era (ainda é) mais um atrativo. Os festejos começam nas dependências do parque, sobem a ladeira e a conhecida escadaria escavada na rocha viva. A fusão entre o sagrado e o profano é uma atração à parte, pois ocorre de forma absolutamente espontânea. Muitas vezes, aquele devoto que subiu de joelhos os degraus, com sua vela de cera, desce mais leve após o pagamento da promessa e participa dos folguedos, até mesmo das danças realizadas nos coretos ao som da música popular. As barracas das argolas, da pescaria, do tiro ao alvo, todas ficavam lotadas dos frequentadores usuais, acrescidas dos fiéis que saíam das missas.

A última década do século XX testemunhou profundas transformações no cotidiano de cidades como o Rio de Janeiro: violência urbana, locadoras de vídeo, shopping centers, playgrounds….

Entraram em decadência os parques itinerantes, os circos mambembes, os cinemas de rua… Surgiram os parques temáticos, os novos circos repletos de restrições, pois o palhaço já não era o ladrão de mulher, os multiplexes transformavam o ritual da ida ao cinema num passeio ao shopping, sem a escolha prévia daquele filme tão esperado, em cartaz num palácio de 3000 lugares ou mesmo num poeirinha de bairro, onde era permitido assistir às fitas impróprias para maiores de 18 anos.

Ainda assim, alguns parques itinerantes resistem pelo Brasil, encantando noites urbanas ou de nossos sertões. À feição de seus parentes próximos, os circos, seus brinquedos atravessam estradas em carretas, buscando seus destinos, para curtas temporadas. Sabe-se lá quantos restaram após dois anos de pandemia…

Apesar de tudo, numa noite estrelada de domingo, ainda é possível chegar ao Largo da Penha, seja de carro, ônibus, BRT, até mesmo de trem, apesar dos longos intervalos e ali, por algumas horas, permanecer num espaço lúdico e onírico, uma possível viagem a tempos ancestrais de uma outra cidade, que também se chamava Rio de Janeiro.

Aos pés do santuário, patrimônio afetivo da cidade,  ainda resiste o Parque Shangai.

Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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