William Bittar: Sobre as pastelarias da adolescência no Rio

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre as pastelarias espalhadas pela cidade do Rio

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Certamente, muita gente ainda se lembra daquele enorme pastel de queijo (era o preferido), 20 x 15 ou 20 x20, que fumegava na primeira mordia, soltando o vapor a queimar os lábios, enquanto o recheio derretido escorria engordurando o uniforme escolar, naqueles balcões cromados ou de mármore das décadas de 1960 e 1970.

Para arrefecer a boca ardendo, acompanhava o caldo de cana espumante, geladinho, servido naquele copo alto, após passar pelo bule grande de aço, com aquele coador como tampa. Antes, admirávamos as varas de cana gemendo na moenda de metal, uma versão urbana para os moinhos dos engenhos coloniais do ciclo do açúcar. Dali escorria o líquido esverdeado, recolhido no vasilhame lustroso, com gelo e dali para nossos copos sedentos.

Era sua majestade, o Pastel! Nosso companheiro quase diário antes ou após as aulas, dependendo do turno. Até mesmo o preço era convidativo pois, com centavos economizados do troco do ônibus, era possível pagar, substituindo o pão doce com aquele creme amarelo, oferecido na cantina do colégio. Diferia das lanchonetes, parentes próximas bem mais caras, visitadas em ocasiões especiais.

Alguns autores indicam que os jesuítas foram responsáveis pela adaptação de uma receita chinesa, os rolinhos primaveras, ao gosto europeu. Trouxeram do Oriente aquele petisco recheado, de massa de arroz. Em Portugal incluiu ovos, característicos da culinária lusa, recheio de amêndoas, tornando-se um doce muito popular.

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No Brasil, a origem do pastel está associada à adaptação do rolinho primavera originalmente feito com farinha de arroz, recheado de vegetais, cozido em uma grande frigideira. Por aqui, pouco a pouco abandonou os ingredientes originais, utilizando apenas uma camada de massa fina, recheio de carne moída, vendido por imigrantes chineses no final do século XIX, em São Paulo, sem muito sucesso.

A partir da Segunda Grande Guerra, em Santos, assim como em tantas outras cidades do Brasil, implantaram-se as pastelarias dos chineses ou seu comércio regular nas barracas em feiras livre. 

Chineses? A tradição indica que imigrantes japoneses foram os responsáveis pela introdução dessa iguaria, associando-se a duas hipóteses, ambas relacionadas à Ásia como origem do pastel: o gyoza, pequeno pastel chinês ou o harumaki, conhecido no Brasil como rolinho primavera. 

Chineses de origem, foram os imigrantes japoneses os principais responsáveis pela sua disseminação no Ocidente, principalmente com a criação de pastelarias na baixada santista.

Diante da situação internacional durante a Segunda Guerra, os japoneses, assim como alemães e italianos, foram tratados com preconceito num primeiro momento, pois integravam os países do Eixo, inimigos dos “aliados”, dos quais o Brasil fazia parte. O trabalho na pastelaria, estabelecimento de origem chinesa, disfarçava sua original procedência, sem discriminações. 

O pastel contou com grande aceitação popular devido aos sabores dos recheios originais de carne, camarão, palmito ou queijo dentro de uma massa fina, seca e crocante, frita em óleo fervente, oferecido a preços acessíveis, quase sempre acompanhado do indefectível caldo de cana.

A comunidade japonesa no Brasil, na década de 1940, era bem maior que a chinesa, estabelecida desde o início do século XX na agricultura, muitos deles responsáveis pela produção de hortifrutigranjeiros nas cercanias de São Paulo capital. Aproveitando a presença nas feiras livres, ali mesmo montaram suas primeiras barracas de pastéis. Criava-se o hábito e um alimento que muitos defendem como genuína criação brasileira, poucos ingredientes casados numa receita muito simples: farinha de trigo, água morna, óleo e um pouco de sal, bem misturados numa massa macia, depois aberta com um rolo, para ficar bem fina e crocante após a fritura.

Das feiras e lojas de São Paulo, o pastel chegou ao Rio de Janeiro tornando-se um verdadeiro hábito para todas as idades. Surgiram pastelarias em todos os bairros, zona norte, sul, centro, popularmente conhecidas como “do china”, fortalecendo o estereótipo original, mesmo que os proprietários fosses japoneses, coreanos, portugueses, espanhóis. Casualmente, numa pastelaria que frequentávamos quando adolescentes, descobriríamos o fio da meada da origem, pois pertencia a japoneses que sequer falavam direito o português, mas assim mesmo nos contaram parte da história. Ali, para nós, era “do japonês”.

Sequer lembrávamos ou registrávamos o nome estampado nos letreiros, quando havia, assim como ocorria com muitos botequins. Lá estava a loja: portas altas de enrolar, abertas junto à calçada, grande balcão com bancos elevados de assento circular, coluna central. Á frente, um longo estribo para os pés. Sobre a bancada, copo com pequenos guardanapos de papel, recipiente com pimenta e dois tubos, amarelo e vermelho, para mostarda e ketchup, acompanhantes da ampliação do cardápio, que acrescentaria pizza, joelhos mistos ou aquela esfiha com muito mais massa que a original libanesa.

Dependendo dos horários, personagens diversos se acotovelavam para um lanche rápido: operários, trabalhadores do comércio, estudantes, num ciclo contínuo a desfrutar daqueles recheados, cujos odores familiares e irrecusáveis preenchiam as calçadas e os narizes gulosos. Como cantou João Bosco, no Rancho da Goiabada, composição de Bosco e Blanc, são passistas, são flagelados, são pingentes, balconistas, palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados…

Em todo o país, recebendo variações regionais e posteriormente ampliando os recheios para além da imaginação, incluíram doces e salgados diversos para alegria dos mais diferentes paladares: bacalhau, carne de sol, salaminho, queijo com goiabada, requeijão, frango ou até mesmo frutas da estação.

Modificaram também sua forma, recebendo desenhos diferentes dos retângulos, quadrados ou meias-luas tradicionais. Diminuíram de tamanho, além daqueles das festas domésticas, vendidos em porções de pequenos pasteizinhos em caixas ou saquinhos.

Recentemente, barraquinhas de pastéis ganharam status e invadiram festas infantis de todas as classes sociais, para a alegria da garotada e deleite do paladar dos adultos que retornam à adolescência ao sabor do óleo fervente chiando, com uma boa desculpa para fugir da dieta.

Proporcionalmente ao nosso apetite pela iguaria, a cidade contemporânea devorou a essência das pastelarias que, para sobrevivência, com raras exceções, tornaram-se lanchonetes comuns, de cardápio variado. 

Na área do SAARA, no Centro do Rio, ainda resiste a Chic’s, assim como outras no Méier, Bonsucesso ou Madureira, junto ao acesso do Mercadão, atraindo o apetite saudoso do transeunte.

As outras ficaram na nossa memória olfativa, visual e gustativa, que preencheram nossa adolescência de sabores que vez por outra renascem quando passamos por aquelas lojas de azulejos coloridos, quadriculados, olhamos a vitrine com pastéis recém-saídos da grande fritadeira borbulhante que promove a metamorfose da massa crua em imensas e inesquecíveis tentações que poucos ousam recusar.

Mas como as pequenas nunca davam chance
O China enfezado vendia em revanche
Pastéis com vento sim senhor

Adoniram Barbosa

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.
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