Crítica de teatro: Ira de Narciso

O texto é de uma estrutura dramatúrgica rara, chamado de autoficção, pois o início da peça é o Gilberto contando que recebeu um e-mail de Sérgio para fazer essa peça

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Foto: Divulgação

A peça “Ira de Narciso”, de Sérgio Blanco, inédita no Rio, com Gilberto Gawronski, apresenta o conflito que nos apavora sempre: ou somos o que somos, ou um reflexo borrado em alguma superfície. O texto é de uma estrutura dramatúrgica rara, chamado de autoficção, pois o início da peça é o Gilberto contando que recebeu um e-mail de Sérgio para fazer essa peça. A trama é simples: a ida de Sérgio, como conferencista, à Eslovenia, em um congresso de Literatura. Ainda que seja uma metalinguagem, recurso aparentemente comum, desenvolve um novo olhar sobre o papel da arte.

A academia/crítica é capaz de falar de temas que são caros e importantes aos artistas? A pegada de Sérgio Blanco, então, assume uma direção interessante: a conferência é sobre o mito de Narciso. E o que são os artistas senão presença de Narciso, pois, em última instância, o que se projeta é sempre o próprio eu?

Sérgio vai introduzindo e aprofundando as oposições clássicas  da atualidade; arte e entretenimento são campos díspares. E, a partir de uma mancha de sangue que percebe no tapete,  Sérgio=Gilberto emburaca em uma trama policial, digna  dos melhores ficcionistas do gênero.
O encontro amoroso, originado no aplicativo, também contrário às práticas sentimentais, é homossexual. E o que é mais narcisista do que se ter prazer com o próprio órgão? E na construção das dicotomias: professor/artista, arte/entretenimento, amor/sexo casual que Gilberto Gawronski realiza uma interpretação única: consistente, emocionante, no tom certo, na modulação da voz, no gesto, nos diálogos que reproduz, o ator nos dá um momento único.

A opção da direção de Yara de Novaes é pelo caminho de expandir a ação que presumidamente se  passa em um quarto de hotel. O duplo, chamado de ator assistente, Renato Krueger, funciona como um Gilberto=Sérgio especular, às vezes reproduz  os gestos, movimenta as  ótimas caixas que formam o cenário ao mesmo tempo em que contém objetos, informações. As projeções não são mera legenda para intensificar o sentido – dialogam, o que é muito interessante em um monólogo cuja temática é ver como funcionam os mecanismos autocentrados.

Na contradição de um monólogo que propõe um diálogo desde a abertura, quando Gilberto=Sérgio conta a gênese do espetáculo, é que a aproximação/afastamento vai se tornando o cerne da questão proposta.

É na contradição  da frase de Rimbaud “Je est un autre” (Eu é um outro) que Narciso não é Narciso, mas um Narciso diverso criado no reflexo. É na contradição que Gilberto se desprende de Sérgio e cria um outro personagem,  em uma atuação como poucas, na qual a plateia quer se ver refletida, pois é um momento de pura arte, prazer e encantamento.

Texto: ****

Direção: ****

Interpretação: *********

Cenário, figurinos, iluminação: ****

Serviço:

Teatro Firjan Sesi
Jacarepaguá  – Sábado, dia 19 20 h

Centro – Quinta e Sexta, dias 24 e 25 19 h

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Jornalista, publicitária, professora universitária de Comunicação, Doutora em Literatura, Bacharel em Direito, gestora cultural e de marcas. Mãe do João e do Chico, avó da Rosa e do Nuno. Com os olhos e os ouvidos sempre ligados no mundo e um nariz arrebitado que não abaixa por nada.

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