Os ventos se tornaram fortes e violentos como nunca. As nuvens se avolumaram. Encorpadas, enroladas aos ventos em furacão, escureceram o dia e despejaram a tempestade sobre a terra. Em Derna, na Líbia, caiu água como torrente sem fim, quebrando as resistências das barragens já gastas do rio. Lama, carros, galhos, telhados partidos, móveis, corpos, enrolados na mesma torrente, correram em direção ao mar, tudo sendo arrastado, a cidade se desfazendo.
O mundo se tornou um lugar perigoso. Um perigo aleatório, que existe, mas não se sabe quando virá. A destruição pode vir após lindos dias de sol. De repente, tudo pode mudar, como se um castigo divino caísse sobre nossas cabeças. Se não vêm em forma de tempestades, as mudanças climáticas se manifestam de formas estranhas, como o “domo quente” que nesta semana superaquece o Brasil. As previsões de um futuro catastrófico viraram presente.
Mesmo quem jamais tenha chegado perto de uma chave de ignição de um automóvel, mesmo quem jamais tenha tido eletricidade, está sujeito aos rigores dos novos tempos. O indígena na floresta, o aborígene na Austrália, a tribo na savana africana, eles não sabem que o mundo está para desabar sobre suas cabeças. Secas acontecerão, rios desaparecerão, o fogo tomará a mata, fogo nas casas, fogo nas estradas. Chuvas intensas, enchentes, dilúvios virão. O homem da cidade, preso a seus afazeres, está distraído da tormenta que se aproxima.
Gaia cospe de volta toda a fumaça que lhe empurraram céus adentro, toda a fuligem que os homens produziram. Gaia parece ter vontade própria, mas seus maus humores são um jogo de dados, fazendo recair ora aqui, ora ali os efeitos violentos das agressões que sofreu. A atmosfera esquenta, os oceanos esquentam, e o calor tudo destrambelha. A ilha de Maui, no Havaí, se acabou em fogo, assim como se incendiaram as florestas do Canadá, da Argélia e da Grécia.
Inundações assolam a Índia e ameaçam o Taj Mahal. Enchentes simultâneas atingiram Brasil, Grécia, Espanha, Turquia, Bulgária e Hong-Kong, tudo isso nesse ano de 2023, que ainda está longe do fim. Roca Sales e Muçum, no Vale do Taquari, sucumbiram sob as águas. Já não é crise, é colapso climático.
Um dia, cada cidade, cada região cairá sob a fúria climática. O Rio de Janeiro, que já caiu antes, cairá de novo. As águas, as pedras e a lama despencarão das encostas, o mar subirá como nunca antes. Ai de ti Copacabana, já disse Rubem Braga, ai de ti Cidade Maravilhosa. Sabemos que a desgraça virá, não uma vez, mas várias.
Mas os governantes fingem não saber. Os prefeitos e governadores também estão nesse jogo de dados com Gaia. E torcem para que a catástrofe da vez não recaia em seu território durante o seu mandato. A prevenção da destruição e das perdas de vidas deveria ser a política mais urgente das cidades. Mas, devem pensar os prefeitos, como colocar recursos na prevenção, se a violência de Gaia pode demorar a escolher a sua cidade? Prevenção não dá voto, atendimento a flagelados sim.
As casas precárias continuam penduradas nos topos dos morros e nas beiras (ou já seria nos leitos?) dos rios. Bairros inteiros estão em áreas baixas, sujeitas a inundações. Existem inúmeros mapas e estudos mostrando os locais passíveis de deslizamentos e inundações. Estão mapeadas as áreas que os mares deverão tomar, com a subida da temperatura da Terra. E boa parte dessas áreas estão ocupadas. O que fazem a respeito o prefeito e o governador?
É preciso planejar com urgência o que fazer. Conter as águas ou realocar moradores, algo precisa ser feito. Mas não, sequer um órgão específico para as questões referentes à crise climática temos. Ao deus-dará, entregues à sorte, seguimos vivendo a vida em seu cada dia, pretensamente ingênuos na nossa felicidade litorânea. Até a hora do desastre.