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Felipe Lucena: Perigoso é ter que viver na rua

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No último domingo, Quintino Gomes Freire, editor chefe deste DIÁRIO DO RIO, escreveu um artigo sobre as pessoas em situação de rua do Rio de Janeiro. No texto, ele fala que “mendigos podem ser perigosos para eles mesmos, e para nós”. Em total discordância com o que foi publicado no odioso escrito, assino este, dividindo a mesma opinião que meus colegas de redação.

O texto fala que “pouco importa se tirar essas pessoas das ruas é uma missão humanitária ou higienista” e, como se não bastasse considerar higienismo em 2022, não apresenta soluções. Uma praxe neste tipo de opinião, diga-se. Simplesmente querem ver as pessoas que estão vivendo nas ruas por falta opção (ou acham que essa gente está nas ruas por esporte?) desaparecerem em um passe de mágica. Não se livra de outros seres humanos como quem se livra de um objeto sem utilidade – por mais que muita gente assim queira.

O texto fala na periculosidade das pessoas em situação de rua. Ninguém é cego a ponto de dizer que crimes não são cometidos. Sabemos que são. Mas colocar todo mundo no mesmo pacote é de uma desconexão completa com a realidade. Ou talvez o motivo seja outro. De qualquer forma, quem comete delitos precisa ser julgado de acordo com a lei, como qualquer cidadão. Por falar em crimes, o Estado (em todas as suas esferas e responsabilidades), que por lei deveria garantir habitação digna a todos, diariamente os comete contra essa abandonada população.  E não só o Estado. Pois a violência a essa população vem de todos os lados.

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População essa que morreu aos montes durante a pandemia sem a menor assistência. A mesma pandemia que levou muito mais gente para as ruas. População essa que passa fome todos os dias. Que pega chuva, frio, sem ter um teto para se abrigar.  Que adoece e morre como indigente, sendo enterrados em covas rasas, repetindo depois da morte a falta de dignidade que lhes sobrou durante a vida. Perigoso mesmo é ter que viver na rua.

Para que esse problema seja solucionado, é preciso entender que não é um problema só. Cada caso é um caso. Já fiz algumas matérias sobre pessoas em situação de rua, inclusive para o DIÁRIO DO RIO, e é preciso um mapeamento amplo para entender a condição de cada um e solucioná-las.

Têm os casos de pessoas que dormem nas ruas, pois moram longe do trabalho, os que vieram de outras cidades e desejam voltar para a terra natal e não conseguem, os com problemas psiquiátricos, dependentes químicos e muitos outros. Colocar todo mundo no mesmo balaio e só querer não ver mais ninguém nas ruas num estalar de dedos sem saber o que vai acontecer com essa gente depois é, no mínimo, desumano. Ou higienista; o que dá no mesmo.

Claro que ninguém deve ter como lar uma marquise, contudo, os abrigos da Prefeitura e outros espaços públicos de acolhimento são insuficientes e de péssimo funcionamento. Há quem prefira ficar na rua a estar nesses locais, inclusive. Ouvi isso de moradores de rua apurando algumas matérias.

Como eu disse em outro artigo abordando este tema “retirar essas pessoas sem ações simultâneas e imediatas de reinserção ao mercado de trabalho, sem condições de vida digna, garantias legais, constitucionais, é como colocar óculos escuros para não ver o Sol. Ele vai continuar lá esquentando tudo enquanto quem defende esse tipo de ‘combate’ finge estar tudo indo bem. Sem ações de reinserção e condições de vida digna, em pouco tempo, os mesmos moradores de rua estarão nas mesmas ruas e para sempre viveremos esse Tom e Jerry nada divertido”.

Muitas cidades pelo mundo resolveram ou reduziram drasticamente o problema das pessoas em situação de rua. Durante a campanha, Eduardo Paes e secretários fizeram promessas e mais promessas, apresentando soluções. Algumas até pareciam boas, como a criação de abrigos com maiores condições de apoio, estrutura, espaço, privacidade, liberdade (quartos separados por portas, por exemplo), horários mais flexíveis – alguns abrigos fecham às 18h e ninguém mais entra. Entre outras propostas, mas muito pouco foi feito até agora.

Para ficar em apenas um exemplo, a Finlândia, no norte da Europa, é considerada o maior sucesso na erradicação do problema no Velho Continente. Por lá, são oferecidos, desde o início, habitações permanentes, que depois são desocupadas quando a pessoa se estabiliza.  E isso acontece, pois se concede assistência social para ajudar as pessoas em situação de rua a colocarem as vidas nos eixos, lidando com questões como vício em drogas e desemprego. Tudo em parceria entre o Estado, fundações e sociedade civil, com apoio financeiro de empresas. Sabemos que a realidade do Rio de Janeiro é diferente, contudo, também sabemos que o que foi feito e não feito até agora não resolveu. Nem vai.

Por fim, o artigo do DIÁRIO DO RIO fala em romanização do problema. Não. Não mesmo. Ninguém acha bacana uma pessoa tendo que viver nessas condições. Acreditar que a solução não é tratar seres humanos como resto de lixo não é romantizar. Está na hora de aceitar que são vidas envolvidas e apresentar soluções. Isso vale, evidentemente, para Prefeitura, mas também para empresários locais, que tanto reclamam do problema e pouco fazem para resolver e quando falam sobre querem que a saída seja ao maior estilo “varrer para longe”.

De acordo com um levantamento feito pela Sociedade Brasileira para Solidariedade, em 2021, eram 7.272 moradores de rua no Rio de Janeiro – existem levantamentos que falam em mais pessoas. Desses, apenas 1.803 estão em alguma instituição de acolhimento como abrigos da Prefeitura.  Quando a Finlândia começou suas ações mais intensas, o número era próximo a esse, considerando que a população do país é quase a mesma que a do estado do Rio. Hoje, é quase zero.  Com ações sérias e humanitárias, se resolve, ou pelo menos se reduz bastante o problema.  Contudo, não podemos esquecer nunca que são pessoas que estão ali e que ninguém está numa boa tendo que viver na rua, seja por qual motivo for.

Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.

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Felipe Lucena

Felipe Lucena é jornalista, roteirista, redator, escritor, cronista. Filho de nordestinos, nasceu e foi criado na Zona Oeste do Rio de Janeiro, em Curicica. Sempre foi (e pretende continuar sendo) um assíduo frequentador das mais diversas regiões da cidade do Rio de Janeiro.

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Ver comentários

  • Felipe Lucena trouxe um ponto de vista importante, com o qual concordo. E saúdo o Diário do Rio por, democraticamente, abrigar uma divergência em relação a um artigo do editor.

    • Papo de comadre kkkkkkk... mas concordo em diversidade de opiniões... só não concordo com hipocrisia... fica a dica!

  • Gostaria que o Felipe Lucena nos desse um grande exemplo e levasse moradores de rua para sua casa e fizesse algo já que o estado não cumpre com sua palavra em nada... poderia demonstrar todo seu amor ao próximo?!? Teria esse grau de empatia?!? Não, né?!? Texto hipócrita e frágil, pois o que vemos do próprio autor deste, não é essa atitude... o mal é achar que o estado é a solução pra tudo, sendo que é o maior causador dos mesmos... vamos ser empático?!? Todos que falaram em pró dessa ideia?! Adoraria ver vocês adotando um morador de rua para sua casas e viverem com suas famílias... qual o problema de dar uma chance para essas pessoas?!? Tenho certeza que vocês conseguem resolver esse problema sem o estado! Olha que bom, né?!? Quando vocês falam sua solidariedade e gesto de amor ao próximo?!? Assim, teremos uma sociedade melhor, né?!? Ou a hipocrisia prevalecerá?!? Não pq mas acho que já temos nossa resposta...

    • Mais uma coisa: qual o orçamento do Rio e o PIB da Finlândia?!? Que comparação ridicula hein!

  • É um alívio profundo ler essa matéria e perceber como é bom estar diante de um texto escrito por um jornalista de verdade e que estudou o tema antes e não apenas jogou seus preconceitos numa matéria. Antes de qualquer motivo humanitário que se possa ter, a lei antimanicomial proíbe a internação compulsória de pessoas em situação rua. A situação é de saúde pública e não pode ser combatida com perseguição. Parabéns ao autor pelo importante passo dado.

  • Felipe, você está jogando para a plateia. Ficar neste banho-maria não resolve. O banho-maria é justamente o que nossos governantes, todos covardes em dizer e agir - com medo do que os outros irão dizer - e assim fora deixando, deixando, deixando tudo às moscas. No fim, parece demonstração de virtude em relação ao "malvadão editor-chefe".

    O editor-chefe, não vou entrar no mérito do que ele falou aqui - pode-se até não gostar do que ele falou, mas ele teve MUITA coragem, teve MUITAS bolas para escrever aquele artigo, tratar dum tema sensível em tempos como este em que não se pode falar das coisas em geral com os nomes que elas têm.

    Não existe o que o poder público possa fazer neste caso dos mendigos - cada um está ali por um motivo diferente: uns falta emprego, outros estão doentes da cabeça, outros escolherem estar ali para escapar de algo que lhes atormenta na vida, outros por outros motivos. Tudo ali se resolve caso-a-caso... e não vai ser governo que vai resolver não: precisa-se de caridade, de afeto, de dinheiro e, mais importante que tudo, precisa-se de Jesus Cristo.

    • Só essa frase "Não existe o que o poder público possa fazer neste caso dos mendigos", demonstra o total desconhecimento do que é responsabilidade do Estado. Quais são as funções do PODER PUBLICO. E quais suas obrigatoriedades.

      • Kkkkkkkk... é uma piada, né?!? Estado precisa lhe fornecer mais o que mesmo?!? Saúde? Segurança? Lhe fornece!?? Volta pra realidade, pode ser?!?

    • Tem que ter muita coragem pra assumir que deseja uma política higienista.
      Ou burrice.

      Isso só pra defender interesse econômico do chefe dono de imobiliária.

  • Felicito o jornal por ainda manter Jornalistas como Felipe Lucena para se opor a pensamentos fascistas de que a melhor solução é pela eliminação pura e simples do que incomoda, sem aprofundar a questão nem apresentar soluções. A cidade que amamos não é feita apenas de espaço, mas de pessoas, e inverter essa ordem é caminhar para a barbárie já vista em momentos tenebrosos da história a que precisamos estar atentos para que não se repitam!

  • Que feio! Se não concorda com o editor chefe, procure outro lugar para trabalhar, alinhado às suas ideias ingênuas e românticas, típicas de alguém jovem e que não mora na zona sul nem no centro. Típico de gente que se infla em discursos humanitários mas jamais arregaçou as mangas para fazer algo.
    Já experimentou oferecer um emprego a um deles? Será que vão aceitar bater uma laje? Experimente…
    Experimente tb perguntar quanto ganham nas ruas da zona sul. Compare com uma faxina ou um emprego de pedreiro.
    Aproveite e tb se mude para Copacabana ou Glória ou Centro, por exemplo, pra ter cracudos e marginais te amedrontando na porta de casa todos os dias.
    E, por fim, acho que não leu direito a matéria do seu editor-chefe, pois em nenhum momento ele coloca todos no mesmo balaio, pelo contrário, categoriza os casos de internação, prisão e abrigo. Cada um deve ser encaminhado (compulsoriamente, sim!) ao estabelecimento que lhe convém. Como pensar em ações humanitárias se a ida para um centro psiquiátrico, ou de dependia química, for facultativa??? Como pode um louco ou drogado estar em condições de decidir sobre sua própria vida?
    Como eu disse, ingenuidades de uma garotada utópica. E aí, meu jovem, o que vc tem feito para mudar o mundo, hã?

    • Parabéns Daniela.....há pessoas que somente sabem criticar, sem apresentar qualquer idéia na direção da solução. É triste, claro que é.....mas existe uma realidade ....Esse estado onipotente que muitos desejam, e trazendo como exemplo a Finlândia (totalmente diferente do Brasil), não existe!! Precisamos lidar com a situação real e não difundir discursos que não trazem soluções!!

    • Feio é ver gente como você, com uma visão atrasada e pouco embasada sobre os reais problemas das pessoas, sobretudo do Rio. Talvez você nunca consiga enxergar, mas eles também são pessoas, também são crianças, idosos e doentes. E como o Felipe escreveu, muito bem, por sinal, também são pessoas que não tem condições de retornar para casa. Entenda, o Rio não acaba na porta do seu condomínio, abra os olhos e tente enxergar. Quanto mais o poder público vira as costas para esse tipo de problema, mais ele cresce.

  • Parabéns ao editor-chefe Quintino Gomes Freire por cobrar dos governos municipal, estadual e federal, ações efetivas para a solução desse gravíssimo problema. A cidade do Rio de Janeiro caminha a passos largos para se tornar uma grande Cracolândia. Quem foi contra a matéria é porque não tem moradores de rua dormindo, defecando e urinando em frente aos seus prédios e comércios. Este é um problema que precisa ser tratado com energia pelos governantes. O Rio caminha para o caos.

  • A imensa maioria dos moradores de rua do Rio não são oriundos da cidade, boa parte vem inclusive de outros estados. Muitos escolhem o Rio por ser uma cidade quente, onde se pode passar noites de inverno na rua sem morrer de frio; por ter uma grande concentração de idosos e de igrejas que julgam estarem fazendo boa ação ao darem comida e roupas a eles e por haver uma cultura de desperdício (alimentos, roupas, móveis etc.) muito forte, especialmente nos bairros mais abastados, que permite subsistir a partir do que é jogado fora.
    Ademais, cansei de ver reportagens em que secretarias de assistências sociais de outros municípios colocam seus moradores de rua em kombis e os despejam no Rio de Janeiro. É preciso que haja um debate e uma política madura e séria, sem omissões nem demagogia barata, sobre esse assunto.

  • I am a Canadian who is reading the english translation of Rio Diary. I agree with everything you have written in your article. We in Toronto as in all cities in the world have people living in the street. I never knew that Finland has been successful in solving this homeless problem with the cooperation of business and government.
    Let's hope the decision makers in business and government implement the successful practises followed in Finland for the good of the homeless and society in general.

    It was brave of you to offer your independent opinion from the view of the Executive Director of the Rio Diary.

  • Faz tempo que eu não leio mais artigos assinados pelo editor chefe, inclusive apago sem ler o boletim de política, pois pouco acrescenta para o debate.