De todos os nomes da Literatura Brasileira, o de Clarice Lispector é certamente um dos mais importantes, mais conhecidos e também um dos mais traduzidos em outros idiomas. Autora de uma obra singular, atemporal e epifânica, Clarice continua despertando novas paixões e confirmando as antigas, já que possui uma espécie de leitor cativo que a lê, divulga e defende. Dos vários aspectos da sua obra, um deles ainda não foi devidamente analisado pela Crítica especializada: seus diálogos com a fé e a transcendência religiosa.
Nascida na Ucrânia e de origem judaica, Clarice Lispector chegou ao Brasil ainda criança e foi aqui que produziu e desenvolveu a sua escrita literária. Num primeiro momento da sua vida profissional, atuou bastante no jornalismo como repórter, com certa predileção pelas matérias e temas ligados à cultura. Pela própria herança/relação familiar com o Judaísmo, foi-lhe impossível ignorar Deus e seus mistérios, o que leva alguns dos seus principais biógrafos a afirmar que ela tinha uma relação difícil com a religião judaica. Sabe-se que ela não praticava nenhum preceito religioso, mas tinha uma relação profunda com o Sagrado, ainda que por vias literárias: “Eu quero simplesmente isto: o impossível. Ver Deus! ouço o barulho do vento nas folhas e respondo: sim!”.
O crítico literário e intelectual católico Alceu Amoroso Lima, por quem Clarice tinha uma profunda admiração, certa vez fez a seguinte afirmação sobre a autora de A hora da estrela: “A presença da transcendência divina, em Clarice Lispector, constitui a nota típica diferencial, tanto metafísica como psicológica e estilística, dessa inclinação planetária, que caracteriza tanto os grandes prosadores como os grandes poetas de nossa literatura pós-modernista”. A observação de Alceu é cirúrgica ao afirmar que tal aspecto – a questão religiosa – é o que “constitui a nota típica diferencial, tanto metafísica como psicológica e estilística” de sua obra. Ou seja, é o mistério clariceano por excelência.
Na edição de O Jornal, de 2/8/1944, Alceu Amoroso Lima fez a sua primeira análise crítica sobre Clarice: “[…] Não sei a que veio a Sra. Clarice Lispector, mas sinto que ela é a expressão brasileira da família dos grandes escritores universais, pois sabe, como poucos, penetrar profundamente nos mistérios da condição humana”. Na verdade, Clarice e Alceu tiveram muito contato pessoal, como se percebe nos exemplares das primeiras edições dos seus romances, todos devidamente dedicados e enviados a Alceu, que guardou com cuidado em sua biblioteca pessoal. Ela também esteve algumas vezes na sede do Centro Dom Vital, na Rua Araújo Porto Alegre, centro do Rio, como se confirma no “Livro de Assinaturas” do nosso CDV. Além disso, a autora de Água Viva se interessou pelos encontros de intelectuais católicos que Alceu Amoroso Lima organizava, junto com o saudoso Frei Bruno Palma, no convento dos frades dominicanos, no Leme, perto de sua residência. Ia, encontrava-se com Alceu, mas ficava sentada à distância nos últimos bancos, dentro da igreja do Leme, “em estado de contemplação”, olhando detidamente as imagens do altar-mor, segundo os registros feitos no Diário de Frei Bruno Palma, amigo pessoal de Clarice.
Numa outra entrevista, Clarice Lispector forneceu uma pista: “Eu não tenho fé em Deus. A sorte é às vezes não ter fé. Pois assim poderá ter a Grande Surpresa dos que não esperam milagres”. Interessante ressaltar que a autora grafou “Grande Surpresa” em letras maiúsculas; seria Deus esta Grande Surpresa? Creio que seja possível, pois Clarice foi daqueles artistas que tinham fé, mas uma fé como experiência transcendental que não depende de igrejas, credos e religiões organizadas e institucionalizadas. Sua fé era uma espécie de entrega ao Mistério, ao Indizível, ao Desconhecido… enfim, à Grande Surpresa.
Em 1969, Clarice Lispector entrevistou Alceu Amoroso Lima para a sua coluna, na revista Manchete, o que despertou um imenso interesse dos leitores à época:
“- CLARICE: Dr. Alceu, uma vez eu o procurei porque queria aprender do senhor a viver. Eu não sabia e ainda não sei. O senhor me disse coisas altamente emocionantes, que não quero revelar, e disse que eu o procurasse de novo quando precisasse. Pois estou precisando. E queria também que o senhor esclarecesse sobre o que pretendem de mim os meus livros.
– ALCEU: Você, Clarice, pertence àquela categoria trágica de escritores que não escrevem propriamente seus livros. São escritos por eles. Você é a personagem maior do autor dos seus romances. E bem sabe que esse autor não é deste mundo…”
Dez anos depois, com Clarice Lispector já falecida, Alceu Amoroso Lima escreveu uma espécie de “testamento literário” sobre esta autora no Jornal de Opinião (em 3/5/1979), analisando-a na perspectiva religiosa e mística, fornecendo uma das análises críticas mais instigantes acerca desta autora. Embora longo, acho que vale muito citar o seguinte trecho:
“A presença da transcendência divina, em Clarice Lispector, constitui a nota típica diferencial, tanto metafísica como psicológica e estilística, dessa inclinação planetária, que caracteriza tanto os grandes prosadores como os grandes poetas de nossa literatura pós-modernista. O caso de Clarice Lispector, tão afim do de Virginia Woolf, é porventura o mais patético da moderna literatura brasileira. Ninguém a excedeu nessa participação total do autor na obra e nessa criação literária como um drama de vida ou morte e não como um sibaritismo ou uma acrobacia intelectualista. Clarice foi sempre a imagem viva da integridade intelectual, desde “Perto do Coração Selvagem” de 1944 até o póstumo “Um Sopro de Vida”, que representa como que sua desnudação literária em face da posteridade. Se faço essa aproximação com a imagem de Frineia, aparentemente absurda, é que o fenômeno da nudez, junto a um a castidade de espírito quase é monástica, representa duas presenças contraditórias que se harmonizam paradoxalmente, nessa grande figura de genialidade e criadora, que tão cedo nos deixou. Essa desnudação do seu mistério interior, cujas fronteiras externas são representadas por sua constante tentação da loucura e por sua fome de absoluto na presença de Deus, assume um caráter de autenticidade e de dramaticidade, que colocam a estética na mais elevada escala platônica de valores e fazem das letras uma profissão sacral. […]”
“Fome de absoluto na presença de Deus” – creio ser a melhor definição crítico-biográfica de Clarice Lispector e sua obra.