Por convenção se atribuiu ao homo sapiens a originalidade e a patente da linguagem, mas arqueólogos perceberam, no decorrer dos anos, que o caminho foi outro e que a origem/autoria se encontrava em um parente próximo, o homo neanderthalensis. Pelo físico do Neandertal, favorecia-se a capacidade falante, uma vez que, no crânio, foi encontrado o osso hióide (também presente em nós) que “indica a existência de uma câmara de fonação (…) onde sons podem ser articulados”, conforme revela o documentário As origens da linguagem. No entanto, órgãos de fonação não bastam para explicar a origem da linguagem em seu todo.
A linguagem, com sua força comunicativa e interativa, não se presta apenas à causalidade anatômica e à relação entre mandíbula, língua e os canais de respiração. Outros arqueólogos e antropólogos defendem, ao contrário, que a origem da linguagem é determinada também pela instrumentalização da força física. O que isso quer dizer? Na qualidade de caçadores, os homens de Neandertal, pelo rigor da necessidade de defesa e de ataque preparavam armas e materiais que lhes rendessem um bom resultado na luta. Não seriam grunhidos ou balbucios que construiriam uma lança ou machado, mas habilidade artesanal.
Um instrumento é um meio, um direcionamento, pensado com vistas à interação com a rudeza material e com a hostilidade ambiental. É, por isso, uma linguagem prática; com efeito, nem um pouco entretida com a abstração da palavra, mas com ações, com o corpo, em virtude da manutenção da vida. Mas também a linguagem é um meio de dominar a matéria, interferindo sobre ela, determinando um sentido e uma forma que extrapola o uso natural. Seria, então, a linguagem a expressão própria do poder humano? Para Nietzsche e para Daniel Everett, sim; que acrescentaram o fato de que a linguagem é a maior invenção da humanidade.
A linguagem começou com a sobrevivência da espécie em um meio capaz de esmagá-la; evoluiu para outro nível: deixou de ser instrumento de poder para ser, em paralelo, invenção. Enquanto criadores os humanos fizeram da linguagem algo que além de dar sentido à matéria, também a nomeia e, assim, separa as coisas do plano de fundo geral da existência. Linguagem é um ato que, segundo Nietzsche, se resume em conferir “reputação, nome, aparência, peso, medida habituais” a uma coisa; é compor “o modo como é vista” a matéria e a vida, de forma arbitrária, vestindo as coisas com “uma roupagem totalmente estranha à sua natureza.”
Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum (1941-1994) figura, no Brasil, a galeria dos geniais inventores de linguagem. De modo que, entre ele e Guimarães Rosa, por exemplo, existe apenas uma diferença de meio de expressão (e não de nível). Ambos criaram um universo de palavras (e imagens) que reforçam ou reestruturam a linguagem e a língua brasileira. Enquanto Rosa, explorando ao máximo a técnica neologista, criou um sem-número de palavras e pôs na boca de seus personagens um amplo vocabulário composto e recomposto pelos maneirismos do sertanejo; Mussum precisou de menos: compôs um único “personagem” que reuniu em seu corpo e em sua fala o universo inteiro desse fenômeno caricatural que é o carioca.
Esse incrível neologista nasceu nos arredores do Parque Estadual do Grajaú, no Morro da Cachoeirinha, no violento ano de 1941, quando a guerra eclodia. Na infância, já demonstrava ser articulável às situações adversas do meio pobre em que vivia ao lado da mãe Malvina e da irmã de criação Nancy. Da mesma forma que em tempos ancestrais, a linguagem do preto Carlinhos foi logo se arranjando às situações para dar expressão ao seu poder e para a manutenção da vida. Por ter que se mudar frequentemente de bairro, Carlinhos desenvolveu uma fala e uma expressividade gestual compatíveis ao meio. Segundo nos relata o biógrafo Juliano Barreto, aquele menino era “ao mesmo, educado e brincalhão, tímido e expansivo.”
De início interativa-social, a linguagem se aprimorou assim que o menino pôde começar a frequentar a escola. Pois é na escola que a linguagem alcança níveis simbólicos e, aos poucos, vai se abstraindo em números, letras e códigos. Diariamente Carlinhos repassava as lições em casa e, assim, alfabetizou a própria mãe. Ele era obcecado por estudos. Dizia à mãe (e depois aos filhos): “burro preto tem um monte, mas preto burro não dá!” Engajado na causa, cursou o ginasial profissionalizante, na Fundação Getúlio Vargas, donde se especializou em mecânica.
Com o certificado em mãos, o adolescente Antônio Carlos assumiu o posto de mecânico em uma garagem no bairro do Rocha. O pós-trabalho era sair pelas ruas até a Leopoldina para encontrar amigos. Em uma dessas, conheceu o bloco carnavalesco União da Guanabara. Foi seu primeiro contato com o samba. “Ali”, diz Barreto, “descobriria sua grande facilidade no domínio da percussão e começaria a entender que suas pernas compridas poderiam ajudá-lo a imitar os passos do mestre-sala com desenvoltura.” Na observação, aprendeu a sambar, a tocar pandeiro, tantã, surdo, agogô, tamborim e reco-reco. E o melhor: uniu duas linguagens; a que já dominava, a linguagem técnica da mecânica; e outra que acabava de aprender, o samba; passou a construir seus próprios instrumentos e a “entrar de vez na bagunça.”
Nem tardou e logo foi acolhido pela “dinastia mangueirense” (Neuma, Cartola, Pandeirinho, Chininha, Celsinho) e assimilou rápido a linguagem daquele ambiente que consistia não somente de língua falada (e cantada) como também de gestualidade adquirida pelo hábito. Uma dessas gestualidades estava na embriaguez. O Carlinhos da Mangueira estava sempre colado na encruzilhada em frente à casa de Neuma bebendo a “pinga”. Onipresença da Mangueira, Carlinhos era o “boa-vida” arrastado para todas as festas, macumbas e casamentos, petiscando e bebendo aqui e acolá e, no intervalo, disfrutando de uma pelada ou de um pagode.
Depois da fase do hedonismo sambista, se instaurou um novo rigor: a vida militar. Mas, Carlinhos, aos 18 anos, já apresentava uma linguagem própria, um modo particularmente seu de lidar com o mundo: a malandragem. Mesmo dentro da rigidez militar, Carlinhos era o recruta popular, o piadista, o boa praça, o corpo dançante e sorridente. Nem a doce melodia da Mangueira nem a molecagem suburbana foram dissipadas com a disciplina castradora da Aeronáutica; mas o contrário. O militarismo é que foi tomado pela força da malandragem.
O quartel deu lugar à arte e o retorno aos hedonismos. Na década de 60, o empresário Carlos Machado contratou Carlinhos e seus amigos sambistas (futuros integrantes do Originais do Samba) para uma turnê no México. Carlinhos, já casado e com um filho, partiu um tanto hesitante, já que não levava a sério a carreira de músico. Mas foi através dessa turnê em um país estrangeiro, onde a sobrevivência se situa, em primeiro plano, sob a base da linguagem, que Carlinhos inventou seu modo único de comunicação. Barreto afirma que o desinibido sambista tinha uma carta na manga: “inventava palavras para brincar com os colegas do show”.
Tal situação, que muitos entendem como sendo “adaptação”, prefiro chamar de incorporação. Carlinhos não fala uma língua estrangeira, herdada, mas uma língua que seu corpo alegre e brincante assimilou e construiu. Para o artista ascendente Carlinhos a palavra era uma matéria elástica, sem substância ou morada fixa, de modo que não tem pátria, nem patrão; ela é invenção. Foi essa tendência arbitrária e anárquica do uso da linguagem – tipicamente palhacesca – que deu margem para que o personagem Mussum viesse à tona substituindo o jovem Carlinhos da Mangueira. Mas, antes, precisou de um impulso criativo de Grande Otelo.
O Mussum humorista que encantou crianças e adultos nasceu no programa “Bairro Feliz”, em 1965. Por indicação de Carlos Machado, ele entrou na TV Globo como elenco de apoio, ao lado dos Originais do Samba, integrando o núcleo popular do programa. Em uma cena hilária, em que Grande Otelo perdeu a “cola” da fala, Mussum se descontrolou e riu alto, ao vivo, desconcertando o veterano ator, que disparou: “tá rindo de quê? Seu muçum!”, quer dizer, seu peixe preto liso e escorregadio. O riso foi geral e Carlinhos foi batizado no mundo do humor.
Em outro episódio, trabalhando com Chico Anysio, na “Escolinha do professor Raimundo” (1967), Mussum enfrentou o desafio de ter que assumir, destacado do grupo Originais, um personagem, ter que decorar textos, encarar câmera e plateia. Chico, ciente do amadorismo do sambista, convidou-o para fazer um aluno simplório e, por assim dizer, “burrinho”, bem aos moldes do humor racista estadunidense. No entanto, o mesmo Chico o orientou a desarticular a língua e a falar de acordo com o próprio mundo de Mussum. Os “ilsis”, “evis” e “unzes”, formadores do modo malandro de falar, deveriam entrar em cena, ainda que em pequenas falas. E Mussum seguiu o mestre, consagrando sua gramática em rede nacional.
Vestido com camisa do Flamengo e um chapeuzinho, Mussum entrou em cena tenso, sem saber o que falar, até que improvisou: “o professor não vai perguntar nada?” Raimundo respondeu: “Não vou, não. Não tem problemis!” Mussum arregalou os olhos, fez uma de suas caretas divertidas e Chico caiu na gargalhada. Teve que aprender no susto a ser um clown. A partir dali, sentiu-se à vontade em cena, forçando os aparatos da linguagem: os contorcionismos faciais, a ginga corporal e, claro, as deformações na fala, os “is” no fim das palavras.
Nos anos 70, atraiu a atenção de Didi e se uniu a Dedé, no programa Os Insociáveis na TV Record; mais tarde, na Tupy e na Globo, com Os Trapalhões, uniu-se a Zacarias. Sendo clown (e não personagem, já que não se discerne o atuante da figura encenada), sua mínima máscara não era o nariz vermelho do palhaço, mas sim seu corpo inteiro, enroupado da máscara malandra do morro. Mussum era versátil, pois tanto servia como “escada” para fortalecer e projetar a piada de Didi, como também servia para protagonizar piadas tipicamente suas.
Mesmo assumindo a caricatura do negro-pobre-sambista-burrinho, no início da carreira; e, com Os Trapalhões, a caricatura do hedonista e malandro da Mangueira, Mussum era autêntico: o preto incorporando o preto; e não um ator branco pintado de black face que, supostamente cômico, fala como se fosse negro. Para os padrões racistas da época o fenômeno Mussum representava um avanço. Ofereceu-se a Mussum a oportunidade de ser ele próprio, de afirmar aquela identidade preta, suburbana e criativa. Ademais, Mussum não falava como se fosse branco; antes, tirava sarro da gramática imperialista porque o clown é tal qual: anárquico, irreverente, insubmisso; desobedece rindo. Seguindo o rastro do humor, Mussum deslocou a ambiência do morro para TV, pois falar como se fosse branco/português não tem a menor graça.
Se a linguagem é um instrumento de poder, se confere sentidos à vida, se nomeia as coisas e as envolve com alguma assinatura pessoal, então a linguagem deve ser o que um certo corpo viveu e descobriu e as formas diversas com que esse corpo interage com o meio, de todas as formas, sendo sempre ele mesmo. A criança, o músico, o passista, o beberrão: essas são expressões pretas, cariocas, descolonizadas, de ser, de falar e de agir do genial Mussum. Salve!
Adorei seu texto e fiquei ainda mais fã do genial Mussum!!!