Guilherme Fonseca: Plano Diretor e a conservação das calçadas

Para o urbanista Guilherme Fonseca desdenhar da calçada, como se esta fosse parte integrante do lote privado e não da via pública, é o mesmo que transferir para o ciclista a responsabilidade de construir a ciclovia

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Foto: MauMach75

Em 2021, iniciam-se os mandatos de novos prefeitos. No caso da cidade do Rio de Janeiro, o prefeito eleito Eduardo Paes (DEM) terá pela frente a revisão do Plano Diretor. O Estatuto da Cidade prevê que a cada dez anos os planos diretores devam ser revisados. O Plano Diretor do Rio, instituído pela Lei Complementar nº 111, é de 1º de fevereiro de 2011.

Considerando este o instrumento maior para o planejamento da cidade, cabe ressaltar um aspecto do plano carioca, aliás, comum em outros planos diretores e também em leis orgânicas no país.  Trata-se de um dispositivo que determina que a conservação e manutenção das calçadas é de responsabilidade do proprietário do imóvel.

No Plano Diretor do Rio, está previsto no art. 23: “A construção, a limpeza e a conservação das calçadas é de responsabilidade do proprietário ou possuidor do imóvel ou terreno frontal”.

Ao transferir a gestão da infraestrutura de um espaço público ao particular, entende-se que o Poder Público municipal exercerá, pelo menos, o seu poder de fiscalizar as calçadas. 

Na prática, sabemos que isso não ocorre, por vários motivos. Primeiro, porque é preciso estabelecer critérios para a construção e conservação das calçadas. Sem um parâmetro construtivo, como o Poder Público municipal poderá exercer o seu poder de polícia?

Uma calçada é dividida em três faixas. A faixa de serviço, menor, próxima ao meio-fio, é reservada para a instalação do mobiliário urbano, arborização e instalações. A faixa livre, é destinada ao passeio, por onde as pessoas circulam. Esta faixa não pode ser obstruída por portões, mesas, rampas e nenhum obstáculo que provoque acidentes ou obstrua a passagem das pessoas. O piso deve ser com material que evite escorregões. É a parte mais importante da calçada, em termos de mobilidade. A terceira e última parte, chamada de faixa de acesso ou transição, é a parte mais próxima do lote e sempre encontrada em calçadas largas. É utilizada, por exemplo, pelo comércio para instalar mesinhas com cadeiras, jardineiras e anúncios. 

A faixa livre deve ter, no mínimo, 1,50 metro de largura. A faixa de serviço varia, mas em média, tem até 80 cm de largura. A faixa de acesso ou transição, é o que sobra entre a faixa livre e o início do limite frontal do lote.

De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, a calçada é parte da via pública. Este é um dado importante, porque reforça os argumentos de que, assim como a construção e o planejamento viário exigem regras claras, sistemas de construção, gestão e sinalização padronizados, as calçadas também deveriam receber o mesmo tratamento. Por que os carros podem e as pessoas não?

O Poder Público municipal deveria, sem a menor dúvida, contribuir, estrategicamente para o bem da mobilidade urbana, não se esquivar  da sua responsabilidade em relação às calçadas das nossas cidades. 

A mobilidade a pé é um componente fundamental para a efetiva migração das pessoas do transporte individual para o coletivo. 

Desdenhar da calçada, como se esta fosse parte integrante do lote privado e não da via pública, é o mesmo que transferir para o ciclista a responsabilidade de construir a ciclovia ou sinalizar a ciclofaixa que passa em frente à sua casa. 

A falta de recursos públicos é sempre o argumento mais utilizado quando se discute o tema. Ocorre que a falta de calçadas adequadas provoca o aumento de despesas em tratamento de saúde, poluição do meio ambiente e perdas econômicas para o setor produtivo devido aos congestionamentos. A insegurança que as calçadas brasileiras causam leva muitas pessoas a tomarem a decisão de sair de casa de carro, o que reduz a atividade física, aumenta a poluição e estimula o uso do transporte individual. 

Não é simples quebrar esta cultura, mas a legislação deveria ser a primeira a contribuir para a mudança. Por outro lado, não adianta produzir manuais de como construir a sua calçada, porque o Poder Público não ficaria isento de fiscalizar a obra. Além do mais, haveria risco de alguns trechos continuarem incompletos devido à ausência de um proprietário com interesse ou condições de executar a obra. Há casos de imóveis do próprio Poder Público cujas calçadas não são nenhum exemplo a ser seguido. Há casos de imóveis em disputa judicial ou inventário que demandariam tempo para um consenso entre herdeiros. Há situação como calçadões centrais de avenidas e rotas que atravessam praças e parques urbanos. Fugir do problema, burocratizando, é a pior e mais cara solução.

Em resposta a um requerimento de informações do vereador Alexandre Arraes, enviado à Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 6 de setembro de 2019, a Subsecretaria de Atenção Hospitalar do Município do Rio de Janeiro informava que 196.387 pessoas haviam sido atendidas nos hospitais Salgado Filho, Souza Aguiar, Miguel Couto e Lourenço Jorge entre os anos de 2014 e 2018. O campeão de atendimentos foi o Hospital Municipal Salgado Filho, que em 2016 atendeu a 5.899 pessoas.

Outro dado é um estudo no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) identificou que 18% das vítimas de quedas atendidas na unidade sofrem o acidente em calçadas. Outro estudo da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) de São Paulo, coordenado por Philip Gold, demonstra que o custo social de resgate, tratamento e reabilitação de pessoas que sofreram quedas nas calçadas pode chegar a quase R$ 3 bilhões por ano. O dado foi publicado no jornal Folha de São Paulo em 2012.

Considerando todos os aspectos a serem revistos na discussão do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, deve-se considerar que o Artigo 23 vai na contramão de qualquer estratégia social e econômica de produção de cidade saudável. Deve-se, ainda, considerar a previsão do Estatuto da Pessoa com Deficiência sobre a obrigatoriedade de implantação de rotas acessíveis.

Como municipalista reconheço que os municípios recebam responsabilidades legais desproporcionais a sua capacidade fiscal, problemas a serem discutidos na agenda de um novo pacto federativo. No entanto, é preciso alertar os gestores públicos de que as calçadas não são pouco relevantes, mas estratégicas para impulsionar o desenvolvimento econômico das cidades e a saúde e o bem-estar da população.

Diante dos desafios orçamentários, deve-se definir uma estratégia para dar início à padronização das calçadas, adotando critérios que considerem as características de ocupação e tipologia da arquitetura dos bairros e a relação dos polos geradores de viagens com o sistema de transporte público.

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