Direitos são passíveis de violação, especialmente quando estados de emergência imperam e nos obrigam acatar suas determinações. Com a permanência da pandemia do coronavírus, algo essencial de nossa constituição enquanto seres sociais e culturais sofreu alteração brusca e inesperada. Cancelaram o Carnaval. Mas Deus! Justo ele, o Carnaval?! Por uma ordem maior que a felicidade, quer dizer, por medida de segurança sanitária, abrimos mão do direito de celebrar a maior festa popular do mundo.
A sensatez das autoridades ao acatar decisões do comitê científico compreendeu qual era a prioridade. Então, tivemos que nos privar de quizombar. Mas não dizem que quizomba é confusão, briga, auê? Que está associada ao caos? Se por ventura estivesse, o cancelamento do Carnaval não teria impactado economicamente a vida de tantos profissionais do setor de entretenimento e mesmo no setor hoteleiro. Carnaval é quizomba e, por constituir o esteio da vida de muita gente, está longe de ser desordem!
Por desacerto lexical das palavras, o senso-comum fez “quizumba” com o sentido de quizomba. Bagunçamos o coreto, como se diz na gíria antiga, porque “quizumba” guarda um sentido que, infelizmente, denota valor pejorativo. Quando, na verdade, quizomba é mais do que essa perigosa corruptela linguística. Quizomba é a forma aportuguesada da palavra Kizomba, original do kimbundu, ou seja, da língua-mãe falada no noroeste de Angola, inclusive na província de Luanda. Seu significado em nada tem a ver com briga. Pelo contrário! Kizomba quer dizer “festa”, “confraternização”.
Dada a restrição de 2021, não kizombei pelos blocos, cordões e avenidas, como de costume. Não fiz a boa “bagunça”. Privei-me de aglomerar, não me fiz uno com o povo, não brinquei. Atenção! Brinquei! Em contrapartida, vasculhei a memória e me deixei levar pela nostalgia. Esbarrei no clássico desfile da Unidos de Vila Isabel, de 1988. Naquele ano, que celebrava o Centenário da Abolição, as agremiações de samba do Rio de Janeiro tiveram a oportunidade de apresentar enredos que protagonizassem de alguma forma a negritude, fosse pela perspectiva crítica fosse pela perspectiva histórica.
Naquele ano, atravessei a madrugada para assistir aos desfiles. Para uma criança de dez anos, que dormia depois do Jornal Nacional, varar a madrugada era uma aventura “chocante”. Aguardava meu glorioso Império Serrano, mas a Vila Isabel desfilava antes. Kizomba, a festa da raça chamava-se o enredo. Tinha de cor a belíssima letra de Luiz Carlos da Vila, Jonas e Rodolpho. Era, sem dúvida, o samba mais empolgante do ano.
Cantava tudo, embora compreendesse nada. Se, em tempos hodiernos, abordar questões étnico-raciais ainda se faz tabu, o que se dirá de 1988, um ano emblemático para o movimento negro? Assisti ao desfile encantado pela beleza e pela vibração da Vila Isabel. Enquanto o axé era transferido da avenida para o público, eu continuava sem entender o que de fato representava tudo aquilo que o enredo representava não somente como espetáculo artístico, mas principalmente como conteúdo de reflexão.
Afirmo que o compreendo hoje, na maturidade, depois de travar contato com pesquisadores negros, de enriquecer referências, de fazer agenciamentos necessários. Compreendi que aquele desfile representava mais do que uma experiência estética de beleza ou mesmo uma disputa entre escolas de samba pelo título de campeã. O olhar artístico do Filipi teve que se aliar ao olhar filosófico, reflexivo, a fim de furar o véu das aparências e entender que ali se encontrava um modelo ideal de militância negra.
E por que modelo ideal? O conceito do enredo surgiu a partir de uma pesquisa do doutor Martinho da Vila. No resumo que apresentou à Comissão de Carnaval da Vila Isabel, Martinho dissertou sobre a ideia geral do enredo: “a palavra Kizomba significa encontro de pessoas que se identificam numa festa de confraternização. Do ritual da Kizomba fazem parte inerentes o canto, a dança, a comida e a bebida, além de conversações, reuniões e palestras que objetivam a meditação sobre temas comuns.”[1]
Martinho se reportou ao conceito de confraternização, mas não se fixou nos termos linguísticos que encerram a ideia de Kizomba dentro dos limites da Angola. Ele partiu da ideia de celebração contida no conceito de Kizomba como uma base para compor um conceito à sua maneira; ou melhor: para reterritorializá-lo no Rio. Porque Kizomba é, antes de tudo, dança e gênero musical típicos dos angolanos, que deu ares de sua graça por volta dos anos 40. Primeiramente, então, consideremos a Kizomba enquanto fenômeno artístico dançante e musicante que se tornou signo de uma cultura.
A arte, segundo defende o pesquisador André Soares, “só se torna inteligível se entendida nos contextos em que é praticada”[2]. No caso da Kizomba, a dança e a música – que guardam semelhanças estilísticas com o zouk antilhano – eram praticadas em ambientes familiares, reunindo um grupo pequeno, mas homogêneo; e, assim, rompia com a divisão de gênero e idade encontrado nos dancings da cidade.
A Kizomba era dançada nas festas de quintal ou sentadas, que ocorriam em casas de famílias da área rural e urbana angolana, de forma improvisada, em dias de descanso ou, planejadamente, por causa de rituais civis (batismo, casamento, etc.). Regada a vinho gelado, cerveja, kussangua (bebida de milho fermentada) e churrasco de porco e frango, os pretos e pretas de todas as idades e localidades se encontravam para, além do prazer comensal, dançarem ritmos africanos, mas também tango, samba e rumba.
Ademais, o ato de kizombar incluía a prosa política; justo em um momento em que nações africanas se encontravam em processo de descolonização. Nas festas de quintal sobrevinham temas caros à comunidade negra e que eram metodicamente estudados por teóricos como Marcus Garvey, Aimè Cesaire, Frantz Fanon e Léopold Senghor. O eco das pesquisas chegava nas festas. Então, dentre os pontos levantados nas prosas, havia aquele da “incorporação de valores de angolanidade”, como diz Soares[3]; o cultivo do sentimento orgulhoso de se identificar enquanto ser-negro.
As festas serviam como fortalecimento dos laços familiares a partir de uma noção que ultrapassava o aspecto biológico de consanguinidade. Para além de raça e do sangue, os angolanos se identificavam por meio de um elemento imaterial que somente a Kizomba era capaz de fazer vir à tona e que os teóricos chamaram de pan-africanismo.
Se angolanos incorporavam valores territoriais, isso quer dizer que identificavam em seu corpo, através da dança e do canto, elementos em comum que exibem as raízes imateriais que lhes constituem como seres sociais e culturais. Eles reconheciam sinais e símbolos familiares diante dos quais se viam como quem se contempla num espelho. E se contempla feliz, orgulhoso de ser quem é: negro, africano, filho do canto e da dança.
Eis aí a base do pan-africanismo: ser um projeto de libertação, a partir da luta por descolonização, também um projeto de fraternidade, em que, libertos, os negros se integram e se incorporam numa unidade transracial, nesse caso, a festa, a Kizomba.
Quando Martinho da Vila concebeu o enredo da Vila Isabel, o pan-africanismo estava em plena efervescência mundial, graças aos movimentos diaspóricos que provocaram migrações de massa humana pelos continentes. Portugal, por exemplo, recebeu um grande contingente de africanos. No Brasil, se não fosse por um esforço pessoal (como no caso de Gilberto Gil, que viajou para Nigéria na década de 70 e Martinho que criou um intercâmbio com Angola nos anos 80), não teríamos progredido.
Em entrevista para o documentário Kizomba – 30 anos de um grito negro na Sapucaí (2018), de Nathalia Sarro, Martinho revela que “o enredo da Vila foi pra fazer a grande festa do centenário da abolição da escravatura”.[4] No entanto, Lícia Canindé, que, à época, presidia a escola, completou a fala do ex-marido: “o grande objetivo também era divulgar o que acontecia na África do Sul, o apartheid (…) a gente queria liberdade pra Nelson Mandela. Porque não vinha nada de África pra cá! (…) A gente queria esse intercâmbio com a África. (…) A nossa luta era política. E a nossa arma era a cultura.” [5]
Sendo assim, negra a Vila Isabel desfilou em 1988 animada por dois propósitos éticos: recuperar a unidade da comunidade que compõe o corpo da escola, da mesma forma como nas festas de quintal de Angola, e reacender a militância, edificando-se como um quilombo do samba. Ambos os fins se harmonizavam com a promulgação da Constituição de 1988, marco da redemocratização do Brasil recém-saído da ditadura.
Helena Theodoro confirma minhas palavras ao observar que: “a Vila Isabel é um grande núcleo de preservação das nossas tradições negro-africanas, porque o Martinho fez uma verdadeira ponte entre Rio e diferentes países africanos”.[6] Martinho organizou “um grupo de quatorze pessoas, todas do movimento negro” que, desde 1982, se encontrava em eventos que culminaram com o Centenário da Abolição.[7] Seu interesse em fazer parte do pan-africanismo, colocou o Rio em conexão com demais grupos étnicos abrindo margem para que a militância negra se consolidasse e se atualizasse.
Nas palavras de Rubem Confete, “o movimento negro estava bem situado naquela época”; por isso, em virtude do enredo de Martinho, “todos abraçaram a ideia”. [8]A Vila não desfilava por si ou por sua comunidade, mas por uma nação zumbi-guerreira, por uma pan-africanidade, por uma identidade brasileira. O desfile deveria ser o que manda a letra: um “evento que congraça gente de todas as raças numa mesma emoção”, que é a emoção de pertencimento a uma essência comum, como dizia Senghor.[9]
“Quando chegou na Kizomba”, disse Helena Theodoro, “era toda comunidade negra do Rio de Janeiro” quem celebrava uma festa onde o que menos valia era a competitividade, a discriminação e a desunião. Não havia segregação de parte alguma, uma vez que o samba apelava pelo fim do apartheid. A Vila conclamava um desfile que fosse transracial, que ultrapasse as barreiras da aparência; que sentir-se negro fosse a tônica da emoção buscada pela escola. Então, o samba-enredo, na qualidade de veículo político e social, reagrupou o negro diaspórico, em conexão cósmica com a África mãe.
Não ter disfrutado do carnaval de 2021 pareceu-me esquisitíssimo; mas só agora as razões se clarificam. Seria simplista pensar que esse fevereiro não valeu pela ausência da diversão. Quando, na verdade, o que me estranhou foi o fato de não ter kizombado, de não ter comungado entre os meus, no ato político celebrativo. Ficar sem carnaval foi como deixar de me ver imaterialmente refletido. Foi o silêncio do tambor e do espelho.
[1] Documentário Kizomba: 30 anos de um grito negro na Sapucaí (2018), de Nathalia Sarro.
[2] Tese Entre Luanda, Lisboa, Milão, Miami, Cairo. Difusão e prática da Kizomba (2015), de André Soares.
[3] Idem, ibidem.
[4] Documentário Kizomba: 30 anos de um grito negro na Sapucaí (2018), de Nathalia Sarro.
[5] Idem, ibidem.
[6] Idem, ibidem.
[7] Idem, ibidem.
[8] Idem, ibidem.
[9] Artigo Pan-africanismo: unidade e diversidade de um ideal na Présence africaine(2015), de Muryatan Barbosa, p.11.