Apesar de termos um Sistema Único de Saúde (SUS), que enquanto ideia é algo absolutamente genial, uma vez que muitos países, incluindo-se aí os Estados Unidos, não têm nada parecido, estamos todos cansados de saber que ele é, para dizer o mínimo, problemático. Assim, os brasileiros que têm a oportunidade e condições financeiras de recorrer a um plano de saúde ou a bons hospitais particulares, por mais caros que sejam, acabam se endividando. Os problemas são recorrentes, mas parece que é necessária uma crise como essa que estamos vivendo no Rio de Janeiro, provocada pela pandemia, para que nos lembremos deles e cobremos algum tipo de providência das autoridades. Como jornalista e crítico de cinema, sempre penso no papel que os veículos de comunicação poderiam desempenhar nesses momentos críticos. Uma série de reportagens? Um documentário contundente? Tudo isso pode ser bastante válido como uma forma de mobilizar as pessoas e pressionar o poder público. E parece que os romenos pensam da mesmíssima maneira.
Candidato da Romênia ao Oscar 2021, “Collective” é um documentário dirigido pelo cineasta Alexander Nanau. O nome do longa-metragem é uma referência a uma boate homônima que, em uma noite de outubro de 2015, com a casa cheia para a apresentação de uma banda de rock, pegou fogo. Inicialmente, o saldo contabilizado pelas autoridades locais foi de 27 mortos e 180 feridos. Uma tragédia, sem dúvida alguma, mas que com o rescaldar das chamas aparentava estar controlada. O problema é que, com o passar dos dias, sobreviventes que pareciam não correr mais risco de morte começaram a falecer em diversos hospitais da capital do país, Bucareste. O que estava ocorrendo? Famílias inteiras, que pensavam já ter superado a pior fase dessa catástrofe, foram novamente golpeadas, desta vez de forma fatal e sem uma resposta para o que estava acontecendo. Essa seria mais uma tragédia a figurar nos anais da humanidade, sem explicação, se não fosse pelo excelente trabalho de investigação realizado por uma pequena equipe de um jornal… esportivo.
Liderados pelo editor Catalin Tolontan, os repórteres da Gazeta Sporturilor descobriram que uma indústria farmacêutica, a Hexi Pharma, estava vendendo produtos adulterados para vários hospitais romenos com os quais tinha contrato. Os produtos em questão eram, basicamente, desinfetantes que deveriam esterilizar as dependências dessas instituições, reduzindo, assim, a chance de possíveis infecções hospitalares. Devido à trapaça, os desinfetantes não possuíam o grau de eficácia esperado e as pessoas estavam sendo vítimas de infecções provocadas por tipos diferentes de bactérias. As matérias publicadas, dia após dia, semana após semana, por esse veículo que, até então, se destacava por promover a eleição do melhor futebolista romeno do ano, desde a distante temporada de 1966, pressionaram os líderes do Partido Social-Democrata e provocaram a demissão do Ministro da Saúde.
Muitas vezes, em situações cotidianas extremamente absurdas, os limites entre a realidade e a fantasia se confundem. Nesses momentos, corremos o risco de não saber mais se é a vida que imita a arte ou o contrário. A “Crise dos Desinfetantes Diluídos”, como ficou conhecido o escândalo, proporcionou esse tipo de confusão. Há pelo menos um desdobramento, que não posso contar aqui sob o risco de dar um spoiler, que mais parece saído das páginas de um ótimo romance policial. O próprio Tolontan, visto através das lentes Nanau, graças ao seu idealismo, a coragem na hora de fazer as perguntas certas, mais parece um herói folhetinesco do que um personagem real. Eu me lembro de que, em dado momento, cheguei à conclusão de que se Mikael Blomkvist, o repórter investigativo sueco da série de livros e filmes Millenium, fosse romeno, seu nome seria Catalin Tolontan.
Com uma narrativa centrada inicialmente no editor da Gazeta Sporturilor e posteriormente no novo Ministro da Saúde, alguém que parece ser tão idealista quanto o repórter, “Collective” é um filme que tem tudo para agradar àqueles que gostam de uma história bem contada, repleta de emoção e adrenalina. Por esses aspectos todos, é difícil imaginar que algum roteirista com a missão de criar uma trama minimamente parecida pudesse ser tão bem-sucedido, pois, às vezes, não há como a arte imitar a vida. Em relação aos aspectos técnicos e fílmicos, é possível afirmar, também, que Alexander Nanau poderia ter ousado um pouquinho mais. O documentário trilha caminhos seguros como, por exemplo, o utilização abundante de imagens da equipe jornalística em intermináveis reuniões de pauta. Contudo, quando realidade e ficção se confundem de tal maneira, é preciso perguntar se era necessário algo mais do que apenas apertar o botão e deixar a câmera fazer o seu trabalho.
Desliguem os celulares e boa diversão.