A conjunção condicional “se” nem sempre tem consonância trágica, exceto no caso de ser empregada em uma situação de morte que inevitavelmente nos assombra por ter sido algo evitável. Lamentamos muito quando somos obrigados a concordar que “se John Lennon não tivesse ido morar em Nova York não o teriam assassinado”, que “se Chico Science tivesse usado cinto de segurança não teria morrido no acidente de carro”. De todos os “se” condicionalmente trágicos de que já tive notícia no meio artístico o mais desolador foi o de Bob Marley.
Se, em 1975, Bob Marley não tivesse feito pouco caso de uma forte lesão nos pés, em uma das inúmeras partidas de futebol que jogava; se não tivesse recusado amputar o dedo cuja ferida não sarava e, por isso, corria o risco de se tornar cancerígena; se não tivesse ignorado o apelo de Rita Marley, sua esposa, e de amigos e amantes; se não houvesse sentido medo de se apresentar amputado ou (como segue certa versão) se não tivesse se agarrado ao preceito rastafári que proíbe amputações, talvez o rei do reggae estivesse vivo entre nós; e não teria se despedido do mundo prematuramente aos 36 anos, naquela triste tarde de 11 de maio de 1981.
Porém, consoante atenta o jornalista Mikal Gilmore, se Bob Marley não estivesse naquelas condições de enfermidade latente, rechaçando o tratamento médico e cirúrgico até os últimos meses de vida, fosse por “demonstração de coragem ou fé cega”, não teria alcançado o nível poético e artístico das composições que compreendem o ciclo que vai de 1977 a 1980.[1] “Marley”, afirma Gilmore, “não queria ver que a morte poderia estar crescendo dentro dele. Em seu lugar, se concentrou em fazer o que tornava sua vida mais significativa: pôs-se a fazer música que pudesse melhorar o mundo que ele deixaria para trás”. [2]
As canções da fase enferma do artista jamaicano figuram metaforicamente o seu “canto do cisne”; dito de outro modo: representam o canto derradeiro do arauto negro, o seu mais sublime gesto de expressão.“Crazy baldhead”, “Zimbawe”, “War”, “Zion train”, “Redemption song” se inserem entre as canções mais contundentes do ponto de vista político e profético, pois explicitam, em uma linguagem clara, os conflitos raciais que se multiplicavam tanto na América Central quanto nas demais comunidades afrodescendentes espalhadas mundo afora. Como nunca havia sido antes, Bob Marley se encontrava em seu momento mais inspirado, mais sensível às demandas humanas e, curiosamente, de maior visibilidade no mainstream.
De The Clash a Eric Clapton, passando por Mick Jagger, Jimmy Page e Stevie Wonder, muitos artistas confessavam admiração e ansiavam combinar uma parceria com Marley. No entanto, nada foi mais conectado à onda criadora do cantor do que sua consciência crítica, que continuava desde os primeiros anos da carreira artística a dar “lugar a vozes que até então havia sido excluídas”.[3] Através da consciência crítica produziu o que tem de mais memorável em sua obra. Consta desse período, ao mesmo tempo de afirmação no cenário musical e de drama pessoal, a composição da canção “Buffalo soldier” que confere o título do presente artigo.
“Buffalo soldier” foi composta mais precisamente em 1978, em parceria com Noel “King Williams” Sporty, enquanto Bob Marley preparava o material para o álbum Kaya (1978). Ao lado dos Wailers, Marley gravou a canção, mas não a incluiu em Kaya por algum critério seletivo o qual desconheço. “Buffalo” fez parte do catálogo de Bob Marley apenas dois anos depois de sua morte, ou seja, em 1983, quando por ocasião do lançamento do álbum póstumo Confrontation. Excluída na época, mas recuperada depois, a canção se tornou um dos marcos de sua obra.
Bob Marley bem que poderia ter vivido para disfrutar do efeito popular causado por “Buffalo soldier” no público e na crítica, mais uma vez “se” não tivesse agido da forma como agiu. Ele não pôde prever seu sucesso e preferiu apostar em outras canções. No entanto, a posteridade se serviu de “Buffalo” não somente como um de seus mais empolgantes reggaes, bem como aquele que contém em sua letra uma das anedotas mais curiosas do universo marleyano e um dos modelos de resistência mais referenciais da música e da militância negra.
A canção “Buffalo soldier” narra a aventura dos soldados que compuseram o regimento de afro-americanos e serviram na Guerra Civil dos Estados Unidos, no ano de 1866. Josep Gavaldá nos relata que esses soldados “de cor” foram convocados pelo Congresso da Lei de Organização do Exército para a formação de seis regimentos de cavalaria e infantaria (incluindo uma mulher chamada Cathay Williams) para “controlar os nativos americanos das planícies, capturar ladrões de gado e proteger os colonos, diligências , carroças e viajantes de ferrovia”.[4]
Assim o fizeram, mas não sem primeiro terem sido lenta e laboriosamente treinados pelo coronel, que precisou reconhecer os limites do corpo do regimento, já que a maioria ainda se encontrava em condições escravas e, por razões históricas, era analfabeta. Da base montada no forte Leavenworth foram transladados para o forte Riley, no Kansas, a fim de dar guarida aos trabalhadores da empresa Union Pacific que se encarregava da construção de uma via férrea. No caminho entraram em embate com os indígenas cheyenne dando provas de sua valentia.
Reza a lenda que os soldados negros foram apelidados de “búfalos” ou “bisontes” pelos nativos americanos. Os indígenas criaram a analogia dos negros com os bisontes em função da cor escura e da tessitura crespa de seus cabelos. Circula a versão de que, em semelhança à força física dos búfalos, os soldados negros eram resistentes e lutavam até o fim, sem modorra. Entretanto, uma imagem de poder como essa atribuída a uma classe social desprezada não foi suficiente para convencer os brancos do valor dos soldados negros. Eles permaneceram durante o período em que serviram à nação estadunidense discriminados, desacreditados e injuriados.
A perspicaz consciência de Bob Marley não evitou reparar que nessa colaboração dos soldados afro-americanos havia uma ironia insuportável. Na letra de “Buffalo”, o cantor examina “o fedor” da condição injusta em que se encontram os soldados negros. Está lá registrada em versos a revolta de Marley: “havia um soldado búfalo no coração da América/Roubado da África/Trazido para América/Lutando na chegada/Lutando por sobrevivência”.[5] A preocupação de um artista consciente é jamais ocultar os fatos para servir melhor à fantasia ou ao gosto popular. É possível olhar com acuidade para os fatos para deles extrair o que há de expressivo.
Bob Marley traduziu em canção um dos mais acirrados dilemas do colonialismo, a saber: o conflito do escravo que, além de todas as obrigações, ainda deve servir ao exército de uma nação que o acorrenta, o trata como mercadoria, como estrume, o espanca, o chicoteia e o assassina. A denúncia é feita no intento de refletir sobre a dimensão irônica de um homem escravizado forçado a lutar como se fosse homem livre, sendo que esse serviço é mais uma das correntes atadas aos seus pés. Ao ser “roubado” da África o escravo não só presta para arar, plantar, colher, cortar lenha, cozinhar, cuidar do filho do fazendeiro, mas também para servir a um exército que não o reconhece como um soldado americano, mas como homem “de cor”.
O que significa isso profundamente? No filme “Soldados búfalos” (1997), dirigido por Charles Haid, um dos búfalos, o sargento Washington Wyatt (Danny Glover), ex-escravo, assume o comando do regimento após o desfalque com a morte do coronel. A missão dos soldados é capturar o chefe da tribo apache e conduzi-lo até o forte. Quando enfim o encontra, à noite, em torno da fogueira, Wyatt é desafiado por uma questão embaraçosa feita pelo indígena. Vitório o interroga: “por que luta por quem escravizou você? (…) por que mata meu povo por aqueles que o tornaram menos que gado?” Wyatt, sem saber responder, não replica e os indígenas, por sua vez, mantêm a resistência, sem depor as armas, preferindo a morte à escravidão.
Em outra cena do filme é o soldado negro quem se aplica um exame de consciência, reconhecendo que o exército estadunidense “nem liga quando nós morremos, nem liga quando nós vivemos. Assim, por que tudo isso? Somos soldados apenas para que nos suguem o sangue e para quê? Acha que isso é servir o exército? Os índios não são meus inimigos. Nunca me fizeram mal”. Apesar da incoerência que leva ao enfrentamento de dois povos que sofrem na pele o racismo excludente, que são privados de sua originalidade e de sua memória cultural, os soldados búfalos seguiram na guerra prestando um serviço escravo como todos os demais.
A construção do soldado búfalo feita na letra de Bob Marley se esforça para dar uma resposta a esse servilismo colonialista à altura das crenças rastafaris. O soldado búfalo da versão de Marley não tem o cabelo amoldado no corte militar; ele exibe uma longa cabeleira dreadlock. Além disso ostenta o verde, o amarelo e o vermelho da flamejante bandeira jamaicana; fuma ganja em piteiras e cachimbos. O soldado búfalo de Bob Marley é membro da família rasta e, por isso, litiga pela liberdade de não ter que servir nunca mais aos desmandos do senhor branco.
Para Marley, o soldado búfalo é a representação simbólica da bravura e da persistência dos negros em lutar contra o inimigo. Sendo que, como bem reforçou o filme de Haid, o inimigo não é o indígena igualmente condicionado ao sistema opressor do racismo. O inimigo é outro; é a Babilônia, o império branco vampiresco que se edifica “sugando o sangue dos que sofrem”, construindo uma nação em cima da exploração da mão de obra negra.[6] O negro saído da África é o ser pisoteado que, desde o princípio da escravidão, foi talhado para ser o que o branco queria que ele fosse, segundo o ideal de supremacia racial. Todavia Marley contestou o sistema.
Em outra canção de sua autoria ele exorta o povo afro-americano a se defender: “nós nos recusamos a ser o que que vocês quiseram que fossemos. Somos o que somos. (…) Rebelem-se”. Se o paraíso prometido por Ras Tafari – o último imperador da Etiópia coroado como Haile Selassie –, o Zion dos africanos, não é um território, um espaço físico que reuniria e salvaria os negros do mundo inteiro formando uma monumental irmandade; então, essa reunião que o rastafarianismo pretendia se realiza na medida em que cada negro oprimido ouve o clamor de uma guerra que não prevê o fim, mas que reclama a participação de cada um dos envolvidos.
A reunião não está em um lugar, mas em um ato de revolta, na assunção de um “se” militante irrecusável. Na medida em que a terra é o maior bem dos homens, como afirmara Fanon, é preciso lutar pela sobrevivência nela até o último suspiro. O soldado rastafari, cujo inimigo colonialista ele enxerga em cada gesto ou olhar discriminatório, crê estar em posse dessa força búfala que o conduz dia a dia na afirmação de seu ser negro e de sua liberdade civil.
[1] GILMORE, Mikal. Cómo Bob Marley cambió el mundo. Rolling Stones especial: Bob Marley, musica y leyenda. Buenos Aires: La Nación, 2015, p.21.
[2] Idem, ibidem.
[3] Idem, p.16.
[4] GAVALDÁ, Josep. Los Buffalo soldiers, tropas afro-americanas en el ejército estadounidense. Fonte: historia.nationalgeographic.com.es
[5] “Buffalo soldier”, canção gravada no álbum Confrontation (1983).
[6] “Babylon System”, canção de Bob Marley gravada para o álbum Survival (1979).