Roberto Anderson: Tombamentos legislativos?

Tombar para proteger, uma vez que tombar está associado a derrubar? Pois esse é mais um dos vários caminhos tortuosos da etimologia das palavras

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Foto: Roberto Anderson

O tombamento entre nós brasileiros significa o ato legal que protege um bem do nosso Patrimônio Cultural. O termo sempre gerou curiosidade, já que, aparentemente, carrega uma contradição. Tombar para proteger, uma vez que tombar está associado a derrubar? Pois esse é mais um dos vários caminhos tortuosos da etimologia das palavras. O nosso tombamento está associado à inscrição em livros guardados no Arquivo Nacional Português, e também à Torre do Tombo, em Lisboa, onde se situava tal arquivo.  

Antes de serem realizados, os tombamentos são precedidos por um estudo criterioso do bem cultural ou natural que se deseja proteger. São feitas pesquisas e visitas ao local, culminando num inventário que envolve, entre outros aspectos, a descrição do sítio, a descrição pormenorizada do bem e de seu estado de conservação, levantamentos arquitetônicos, a sua história, a análise de sua importância cultural e, mais recentemente, a definição de uma área de proteção da sua ambiência. Tais estudos são complexos, demandam tempo, diversas viagens, visitas a arquivos históricos, e envolvem profissionais de diferentes áreas, como historiadores, arquitetos e museólogos.

Toda essa preparação para o ato de tombamento está alicerçada em razões já consolidadas. É o momento em que se caracteriza o bem a ser protegido, se fundamenta as justificativas para tal proteção, e se estabelece os parâmetros para a sua preservação e futura conservação como bem cultural. Ela é também uma atitude de responsabilidade frente ao proprietário do bem, uma vez que o tombamento significa algum grau de interferência no seu direito de propriedade. A partir do ato legal, o proprietário, caso não concorde, pode recorrer ao Conselho de Tombamento. Mas, uma vez consolidado, o tombamento se agrega ao registro do imóvel nos cartórios e impõe obrigações, como a de não alterar o bem sem autorização do órgão de Patrimônio, não o desfigurar e, sobretudo, não o demolir.   

Pelas razões acima expostas, vê-se que o ato de tombamento deve ser impessoal, técnico e lastreado em informações e estudos sólidos. E muito importante, ele não pode servir a razões de disputa política, retaliações entre inimigos políticos ou perseguição. Ele deve ser, fundamentalmente, um ato de Estado, considerando os interesses da coletividade. Tradicionalmente, e lastreado na Constituição, o ato de tombar tem sido uma prerrogativa do Poder Executivo, o mesmo que dispõe de quadros técnicos, de um órgão de proteção ao Patrimônio e, teoricamente, de uma continuidade de políticas públicas.

Mas eis que nos deparamos com uma realidade cada vez mais frequente: o tombamento pelo Poder Legislativo. Precisamos falar sobre isso. É natural que os parlamentares se interessem pela preservação do Patrimônio, legislem sobre o assunto, apoiem campanhas contra a perda desse Patrimônio e, eventualmente, busquem agir numa emergência. Alguns vereadores do Rio de Janeiro, por exemplo, foram grandes aliados contra a demolição do Quartel General da Polícia Militar, pretendida pelo ex-governador Sergio Cabral. O problema está quando o Parlamento decide ele próprio realizar tombamentos.

A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro tem sido profícua em propor tombamentos. Até recentemente os governadores fluminenses não reconheciam esses atos e não promulgavam as leis realizando tais proteções. Mas desde o governo Pezão abriu-se a porteira, passando o governador a considerar válidas tais leis. Como a Alerj é rápida na proposição de tombamentos, ela já se interessou em preservar os mais diversos bens, incluindo-se a casa do ex-deputado Sivuca, do Esquadrão da Morte. Não há estudos aprofundados que embasem tais “tombamentos” e não há quem se responsabilize pelo acompanhamento futuro desses bens. Para o contribuinte fica a dúvida. O “tombamento” estará valendo? O imóvel poderá se beneficiar de isenções fiscais? Quem atesta a adequação do bem para se candidatar a tais isenções?

O Poder Legislativo pode editar leis tratando de normas gerais e abstratas para a proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico e paisagístico. Quando ele legisla sobre um bem específico, ou seja, produz uma lei de efeito concreto sobre um bem, ele está ultrapassando a benéfica separação dos poderes. Essa, além do mais, é uma ação de caráter administrativo, de prerrogativa do Poder Executivo.

Outro aspecto a ser mencionado é a profusão de tombamentos de bens imateriais pelo Poder Legislativo. Além dos problemas já apontados, há a impropriedade do uso do termo tombamento, apropriado a bens materiais, e a banalização da proteção ao Patrimônio imaterial. De forma semelhante ao que ocorre nos tombamentos, o reconhecimento de uma manifestação cultural como Patrimônio Imaterial exige um longo e aprofundado processo de estudo, assim como um plano de salvaguarda daquela manifestação no futuro. Não se trata de uma mera canetada.

No ponto em que chegamos, parece muito difícil recolocar o gênio na garrafa e esperar maior contenção do Poder Legislativo. É preciso reconhecer também a legitimidade do interesse de certos parlamentares pela proteção do Patrimônio. Uma saída para tal impasse seria a criação de uma norma de proteção emergencial pelo Parlamento, a ser posteriormente confirmada pelos Conselhos de Patrimônio locais, dirigida apenas a bens sob ameaça iminente de destruição. Dessa forma, o Poder Legislativo teria um importante papel de correção de situações provocadas pelo Poder Executivo ou por ele ignoradas. 

Mas para que se chegue a alguma solução para a confusão que se estabeleceu com os “tombamentos legislativos”, é necessário um amplo debate que inclua constitucionalistas, especialistas da área de Patrimônio e os próprios parlamentares. É um caminho difícil, mas que precisa ser tentado.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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