Roberto Anderson: O Condômino negro

'Durval, o homem negro que buscou conforto e segurança, que buscou fugir da sina a que estão relegados os seus irmãos, que buscou o pequeno luxo de morar num lugar apartado da cidade violenta, morreu no portão do seu condomínio'

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Um sargento da Marinha chega de carro à entrada do seu condomínio. Por algum motivo, não consegue abrir rapidamente o portão que dá acesso ao interior do mesmo. Lá dentro, se sentirá seguro, protegido na fortaleza em que o seu, e os demais condomínios, se transformaram. Fora dali, acredita, tudo é risco, tensão, o mundo de violência que enxergamos, ou acreditamos enxergar, em nossas cidades. Qualquer passante, um perigo. O encontro com o outro, um provável assalto. 

Um cidadão negro é morador do mesmo condomínio. Deus sabe os sacrifícios que ele e os seus fizeram para conquistar um lugar nesse mundo de segurança. O bairro é Columbandê, em São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com altos índices de pobreza, desemprego e violência. Pessoas negras em condomínios de classe média são uma diminuta  minoria, a nos alertar todos os dias para a nossa desigualdade social e racial.

Dentro do carro, o sargento com dificuldades para entrar no condomínio se exaspera, o nível de paranoia sobe. Lembra qie muitos assaltos ocorrem nesse momento de transição entre o mundo externo e o do condomínio. Ele está armado, um risco real. Não deveria, pois não está em serviço. Mas nos últimos anos foram batidos todos os recordes de compras de armas. Há armas e munições em abundância na mão dos cidadãos que podem pagar. O governo Bolsonaro conseguiu destruir também o Código do Desarmamento.

O homem negro se aproxima do portão. É noite, chove, a iluminação pública é precária. Ele é uma exceção no mundo dos condomínios, sua presença ali é algo fora do lugar no Brasil que teima em manter os padrões de separação advindos da escravidão. Ele leva a mão à cintura, ou à mochila junto ao peito, para pegar algo: chaves, tablet, celular?

O sargento armado não tem dúvidas. Há um homem negro no meio da noite, debaixo de chuva, que se aproxima. Ele não tem por que estar ali, a não ser para cometer um assalto. Atira. De dentro do carro mesmo, protegido, por detrás de vidros escurecidos pela película de insufilme. 

Três tiros certeiros abatem o homem negro, que se arrasta. Estava tão perto de casa, a filha pequena já o via pela janela. Agora ela o vê caído no chão, baleado. Toda a sua luta para ter um lugar seguro, para não ter que criá-la numa favela, onde bandidos e policiais atiram a esmo, foi em vão. Não era para isso acontecer, não ali. A chuva cai sobre a sua imensa dor.

O sargento armado atirou ao ver um homem negro. Teve a certeza de que seria vítima de um assalto. Afinal, o que mais ele faria na porta de um condomínio? Sai do carro. Só então pergunta sobre a única razão que é capaz de conceber para a sua presença ali: você está armado? A resposta do outro, sou morador do mesmo condomínio que você, lhe parece absurda. Não é uma realidade que ele possa compreender. 

Durval, o homem negro que buscou conforto e segurança, que buscou fugir da sina a que estão relegados os seus irmãos, que buscou o pequeno luxo de morar num lugar apartado da cidade violenta, morreu no portão do seu condomínio. O portão que continua fechado.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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