Um sargento da Marinha chega de carro à entrada do seu condomínio. Por algum motivo, não consegue abrir rapidamente o portão que dá acesso ao interior do mesmo. Lá dentro, se sentirá seguro, protegido na fortaleza em que o seu, e os demais condomínios, se transformaram. Fora dali, acredita, tudo é risco, tensão, o mundo de violência que enxergamos, ou acreditamos enxergar, em nossas cidades. Qualquer passante, um perigo. O encontro com o outro, um provável assalto.
Um cidadão negro é morador do mesmo condomínio. Deus sabe os sacrifícios que ele e os seus fizeram para conquistar um lugar nesse mundo de segurança. O bairro é Columbandê, em São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com altos índices de pobreza, desemprego e violência. Pessoas negras em condomínios de classe média são uma diminuta minoria, a nos alertar todos os dias para a nossa desigualdade social e racial.
Dentro do carro, o sargento com dificuldades para entrar no condomínio se exaspera, o nível de paranoia sobe. Lembra qie muitos assaltos ocorrem nesse momento de transição entre o mundo externo e o do condomínio. Ele está armado, um risco real. Não deveria, pois não está em serviço. Mas nos últimos anos foram batidos todos os recordes de compras de armas. Há armas e munições em abundância na mão dos cidadãos que podem pagar. O governo Bolsonaro conseguiu destruir também o Código do Desarmamento.
O homem negro se aproxima do portão. É noite, chove, a iluminação pública é precária. Ele é uma exceção no mundo dos condomínios, sua presença ali é algo fora do lugar no Brasil que teima em manter os padrões de separação advindos da escravidão. Ele leva a mão à cintura, ou à mochila junto ao peito, para pegar algo: chaves, tablet, celular?
O sargento armado não tem dúvidas. Há um homem negro no meio da noite, debaixo de chuva, que se aproxima. Ele não tem por que estar ali, a não ser para cometer um assalto. Atira. De dentro do carro mesmo, protegido, por detrás de vidros escurecidos pela película de insufilme.
Três tiros certeiros abatem o homem negro, que se arrasta. Estava tão perto de casa, a filha pequena já o via pela janela. Agora ela o vê caído no chão, baleado. Toda a sua luta para ter um lugar seguro, para não ter que criá-la numa favela, onde bandidos e policiais atiram a esmo, foi em vão. Não era para isso acontecer, não ali. A chuva cai sobre a sua imensa dor.
O sargento armado atirou ao ver um homem negro. Teve a certeza de que seria vítima de um assalto. Afinal, o que mais ele faria na porta de um condomínio? Sai do carro. Só então pergunta sobre a única razão que é capaz de conceber para a sua presença ali: você está armado? A resposta do outro, sou morador do mesmo condomínio que você, lhe parece absurda. Não é uma realidade que ele possa compreender.
Durval, o homem negro que buscou conforto e segurança, que buscou fugir da sina a que estão relegados os seus irmãos, que buscou o pequeno luxo de morar num lugar apartado da cidade violenta, morreu no portão do seu condomínio. O portão que continua fechado.
Desgraça