Crítica literária: Criogenia de D. – congelar o passado através da palavra

Márcia Silveira faz a crítica do livro Criogenia de D., de Leonardo Valente, Editora Mondrongo

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Desde o título, a identidade da personagem principal de Criogenia de D. é um mistério. Identificando-se apenas pela inicial do seu nome, ela escreve em primeira pessoa e se refere a si mesma ora no masculino, ora no feminino:

“(…) sou tranquilidade e transbordamento de mim mesmo nos preciosos períodos de desamor; neles sou arisca, maldoso e ardilosa, e vejo o que o idiota nunca viu ou fingiu não ver. É no desamor que consigo tornar-me escritor.”

Numa noite de insônia provocada pela aparição de um conhecido na TV, D. decide escrever sobre sua vida como uma forma de “congelamento” – criogenia – do passado. A personagem acredita na escrita como uma espécie de conservação pela palavra.

O autor Leonardo Valente fez das páginas de Criogenia de D. um campo de experimentações. Ele varia a forma para enfatizar o conteúdo. Inicia as frases com letras minúsculas, modifica a pontuação, o tamanho da fonte e apresenta páginas com apenas uma frase. A identidade de D. está presente nestas escolhas formais, devidamente interpretadas e explicadas pela personagem. A metalinguagem é também um recurso que aparece em diversos momentos da narrativa, quando a personagem cita elementos próprios da escrita, como em alguns títulos de capítulos: “sem título”, “não quero um título aqui”, “centralizo, pois é importante”.

“talvez fosse mais feliz se tivesse uma vida bem pontuada, mas acho que escrevo do jeito que escrevo porque tenho medo da felicidade, o fracasso e a tristeza me justificam e me despontuam.”

Assim como o poeta Manoel de Barros confessou em um poema: “noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira”, a personagem D. afirma mais de uma vez que os leitores não devem confiar em suas palavras, pois nem ela sabe se é verdade ou não o que escreve. E, do início ao fim do livro, o leitor realmente se sente confuso e enganado pelos seus relatos. Afinal, toda escrita de memórias exige um preenchimento de lacunas que aproxima essa escrita da ficção.

Neste jogo entre verdade e mentira, entre se esconder e se mostrar, o autor criou uma personagem complexa, que reconhece, em diversos momentos, suas fraquezas, como a inveja que sentiu do conhecido que apareceu na TV. Que fala da hipocrisia da sociedade, mas não deixa de reconhecer seus próprios comportamentos ambíguos e expor as pequenas mentiras que ninguém está livre de contar no dia a dia. D. possui uma personalidade multifacetada e não é preciso saber se trata-se de um homem ou de uma mulher para compreender que é alguém imerso em um universo psíquico complexo – como todo ser humano.

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Livro: Criogenia de D.: ou manifesto pelos prazeres perdidos
Autor: Leonardo Valente
Editora: Mondrongo
Páginas: 130

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Bacharel em Filosofia, pós-graduada em História da Arte. Escritora e revisora. Mãe do Bruno e da Daniela. Bibliófila.
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