Roberto Anderson: Rua Abade Ramos

Colunista do DIÁRIO faala sobre sua juventude em tempos de ditadura militar

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Entre o fim década de 1960 e o início da de 70, o Jardim Botânico era um bairro calmo, onde famílias de classe média moravam em pequenos edifícios, a maioria sem elevadores. Poucas eram aquelas que ainda moravam em casas. As pessoas se conheciam, como em qualquer cidade do interior. Sabia-se da irmã do cantor famoso, que, independente, morava num quartinho que seria do zelador do edifício. Sabia-se que o zelador do tal edifício tinha recursos e morava num dos apartamentos. Cumprimentava-se as mães dos amigos, às vezes se ia até à cachoeira na mata. À noite, era comum ver passar o casal, ela artista plástica e ele americano, que caminhava pelas ruas após o jantar.

A rua Abade Ramos era o centro de um dos núcleos do bairro, entre o Parque Lage e a praça Pio XI. Logo acima ficava a Benjamin Batista, rua junto à encosta do Corcovado, onde o edifício projetado pelo arquiteto Jorge Moreira era conhecido como “favela americana”, pela quantidade de famílias gringas que lá residiam. Abaixo, na rua Jardim Botânico, ficava o muro branco, com detalhes neocoloniais, da Hípica. De lá saíam os cavaleiros que às vezes encontrávamos cavalgando às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. 

Nessa época, a lagoa era um lugar meio ermo e bucólico. Meu avô, quando vinha passar temporadas em nossa casa, costumava passar por lá de manhã cedo, no seu caminho para a missa. Na ida, levava bolinhas de miolo de pão para jogar aos passarinhos. Na volta, nos contava das peças íntimas que havia avistado pelo chão, resultado de saliências noturnas que o lugar propiciava. E havia os pedalinhos, simples, ainda sem formas de cisnes, onde um conhecido trabalhava. Era comum que ele liberasse o uso noturno, para que pedalássemos até a outra margem, em Ipanema, onde tomávamos um sorvete no Arosa. 

Ser jovem naquele Jardim Botânico era fazer parte de alguma das turmas do bairro. Entre elas, a da Lopes Quintas, famosa por ser briguenta, e a da Abade Ramos. Essa, por sua vez, durante muito tempo foi dividida em duas. Os um pouco mais velhos, que fumavam maconha, e os mais novos, que juravam que nunca fumariam. Depois, é claro, tudo ficou misturado. Veio também a onda do mandrix, que deixava os que dele gostavam meio abobalhados, ridiculamente carentes nas festas de fim de semana. E houve experiências mais radicais, que em alguns deixaram sequelas que perduraram por um certo tempo.  

O bairro tinha o Cine Jussara, com cadeiras de madeira que rangiam durante os filmes. Lá as sessões de cinema eram ruidosas, com os jovens se metendo nos diálogos dos atores, rindo exageradamente, e atrapalhando os pobres coitados que queriam assistir um filme em paz. Coisas eram arremessadas na tela e, não raro, o gerente acabava expulsando uns e outros. De vez em quando, talvez por descuido, a sequência de filmes B em cartaz era interrompida por algum filme de arte. Era o deleite dos poucos jovens cabeça do bairro, e assunto para discussões intermináveis sobre o que era a arte e quais eram as intenções do diretor. 

Era comum que, após a realização dos deveres escolares, nos reuníssemos nas escadas da portaria de um predinho de feição normanda. Quem demorava a vir para a rua era chamado pela turma, com um assovio insistente na frente do seu edifício. Sentávamos naquela escada, grudados uns aos outros, pelo prazer de nos sabermos vivos, cheios de desejos, e de dúvidas. Felizes, falávamos as maiores bobagens para matar o tempo, atrapalhando a passagem dos pacientes moradores do edifício. E ficávamos até de noite nessas brincadeiras. 

A polícia militar já vinha fazendo rondas com frequência na área, talvez em busca de drogas, ou de alguém considerado subversivo. Em um sobrado da rua Abade Ramos, havia se instalado o jornal Opinião, tabloide independente, da corajosa oposição à ditadura militar, que então mandava no país. Em uma dessas vezes, o camburão da PM apareceu no início da noite. Como de costume, os policiais pararam a todos os jovens que encontravam, pedindo os documentos. Portar um documento havia se tornado essencial para se safar nessas abordagens. 

Eu estava a poucos metros de casa, mas sem documento, e mesmo declarando ser menor de idade, fui recolhido à caçamba do camburão. De repente, a leveza da expectativa do encontro com os amigos foi substituída pelo temor de estar num compartimento abafado e escuro, aonde outras pessoas já haviam sido recolhidas. O camburão subiu a Rua Benjamin Batistae lá pegou mais um. Era meu amigo Kaiq, o que compartilhava comigo o interesse por arte e cinema. E circulou por outras ruas, sempre recolhendo mais gente, colocando uns sobre os outros, até que quase não se podia mais respirar. Um dos detidos reclamou do aperto e do cheiro de queimado. Em resposta, ouvimos os policiais rirem, dizendo que o carro ia pegar fogo com os detidos lá dentro.

Havia mesmo algo de errado com a viatura, que pouco depois parou. As portas do compartimento traseiro foram abertas e mandaram que saíssemos. Os guardas formavam um círculo em volta da traseira do camburão e pudemos ver que era um local deserto, vazio de construções. Parecia que a sessão de porrada era iminente e eu pensava em como uma simples saída de casa podia dar naquilo. Por fim, fomos colocados de volta no camburão e levados para o quartel da PM da rua São Clemente.

Fomos fichados e avisados que, por ser um quartel militar, não poderíamos mais ser liberados naquela noite. Só sairíamos na manhã seguinte. Meus amigos de rua haviam avisado lá em casa e, mais tarde, um advogado da família conseguiu me retirar do batalhão. Havia me livrado de passar a noite no quartel e devia me sentir agradecido por não haver mais consequências. Era a época da minha até alegre juventude, mas estávamos vivendo sob uma ditadura militar. E era assim que as polícias agiam, emulando a repressão de órgãos, como o DOPS e as Forças Armadas. Como até hoje o fazem com os mais pobres. Ditadura nunca mais!

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

4 COMENTÁRIOS

  1. Minha avó leu e disse :”texto estapafúrdio”. Segundo o autor o bom é hoje em dia com assaltos, roubos, violência, tráfico, policiais morrendo iguais a moscas, população desamparada e tantas outras coisas inumeráveis. Mas para o autor a “ditadura militar” tocava o terror. Ridículo.

  2. Thales, sinto lhe dizer, mas seu pai estava enganado. Houve corrupção sim, e muita, durante a ditadura militar. Militares ocuparam a maioria dos postos civis e enriqueceram. No fim da ditadura, o candidato dos militares era Paulo Maluf. O nome não lhe parece familiar ao assunto corrupção? Fora a corrupção, a ditadura prendeu, censurou e torturou. E deixou o país quebrado, com uma dívida gigantesca e inflação galopante. Melhor você se informar mais.

  3. O cara fumava maconha tocava horror no cinema andava sem documento e achava tudo normal??? O dia que as pessoas entenderem que certo é certo e errado é errado, as coisas melhoram…. Obrigado 64!

  4. Engraçado que você fala dos “mais pobres” como se fosse sua situação da época… meu pai e outros, falavam que no período da ditadura militar, podiam andar nas ruas tranquilamente sem medo de ser assaltado e etc… caminhavam do Bangu Atlético Club até o bairro Jabour às 3-4 da madrugada sem receio algum, só andavam com seus documentos (que é mínimo para um cidadão, não ser enterrado como indigente e outros problemas como ter de ir para uma delegacia passar por identificação)… aliás, quem introduziu o sistema de identificação no Brasil, foi Getúlio Vargas, com digital… um dos poucos países do mundo que fazem isso, pois assim, com toda população “fichada”, muito mais simples encontrar um “inimigo do estado” (americanos e franceses que conheci, acham isso um absurdo, como se o governo nos visse como criminosos rsrs)… mas voltando, sempre me falou da tranquilidade que havia, sendo abordado… nunca teve problemas… melhor hoje?! Não posso avaliar com exatidão, pois não vivi aquele período… mas visando que ele transitava em lugares que hoje não possui a mínima possibilidade, tenho uma tendência em dizer que sim… isso, não levando em conta os números da criminalidade que obviamente, eram menores… uma coisa que meu pai me dava como exemplo era: você sabe de algum militar que saiu rico da ditadura?! E quantos políticos ricos você vê hoje?! Inegável tal colocação rsrs… não estou dizendo que ditadura é boa, nenhum regime ditatorial é bom, porém, o que vemos hoje, está péssimo…

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