Márcia Silveira – Simone de Beauvoir: protagonista de sua própria história

Colunista do DIÁRIO DO RIO opina sobre o livro ''Simone de Beauvoir: Uma Vida''

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Capa do livro ''Simone de Beauvoir: Uma Vida''

A filósofa e escritora Simone de Beauvoir (1908-1986) é geralmente vista como uma discípula de seu companheiro, o também filósofo e escritor Jean-Paul Sartre (1905-1980) e como uma extensão da vida e da obra dele. Durante toda a sua vida profissional, seus escritos foram considerados “pouco originais” pelos críticos, que assumiam que a função de Beauvoir era apenas a de popularizar os pensamentos de Sartre.

No livro ”Simone de Beauvoir: Uma Vida”, a autora Kate Kirkpatrick busca mostrar que a filósofa francesa foi protagonista de sua própria vida e desenvolveu seu próprio trabalho filosófico – muitas vezes, inclusive, discordando de Sartre.

Simone cresceu em Paris, numa família burguesa e católica. Seus pais lhe forneciam diversos livros, o que ajudou a formar muito cedo um gosto literário. Eles queriam que ela fosse inteligente, porém não uma intelectual. Quando informou aos pais que queria estudar Filosofia, eles foram contra – o pai achava que a Filosofia era inútil, e a mãe temia que os estudos filosóficos lhe tirassem a fé. A biógrafa Kate Kirkpatrick conta que Simone precisou enfrentar diversos desafios para se tornar uma intelectual, quando o que se esperava dela era que se casasse, tivesse filhos e dominasse os serviços domésticos.

Ainda jovem, Beauvoir já fazia anotações em seus diários que continham ideias existencialistas. Ela mostrava interesse pelo tema do amor – que, para ela, era um conceito ético, e não apenas romântico – e pela filosofia da liberdade, que permeou toda a sua vida e o seu trabalho como filósofa. Em uma entrevista concedida a Alice Schwarzer nos anos 80, Simone disse que conseguiu se manter independente em relação a Sartre porque já sabia o que queria fazer muito antes de conhecê-lo.

Mas não era isso que seus críticos achavam. Todas as suas obras literárias e filosóficas foram acusadas de “falta de originalidade”, por repetirem a filosofia de Sartre. No entanto, segundo Kate Kirkpatrick, Simone deixou claro em suas memórias que a ética existencialista, sempre atribuída a Sartre, foi, na verdade, desenvolvida por ela.

“Assim como Beauvoir, Sartre era fascinado pelo conceito de liberdade e pelo desejo humano de significado desde os tempos de estudante. (…) Mas, ao contrário de Beauvoir, ele ainda não havia encontrado uma maneira de incorporar a ética em sua filosofia de liberdade e resolver o problema do transcendente. Beauvoir expressaria sua resposta de várias formas literárias: um ensaio, um romance e uma peça de teatro. (…)

Portanto, erroneamente se concluiu que foi Sartre quem desenvolveu a ética do existencialismo (…); e em 1945 ela disse abertamente que era nisso que ela, e não Sartre, estava trabalhando.” A obra mais famosa e também mais polêmica de Simone de Beauvoir é o livro O Segundo Sexo (1949), para o qual Kirkpatrick separou um capítulo chamado “O escandaloso O Segundo Sexo”. Neste livro, Simone argumentava que o papel que a sociedade impõe à mulher não é algo determinado biologicamente.

Para a filósofa, era em função de uma cultura sexista que a mulher era considerada um ser secundário. Apesar de tão capazes quanto os homens, às mulheres eram atribuídas apenas as funções de dona de casa e mãe, como se essa fosse a essência de ser mulher. Segundo o existencialismo de Simone de Beauvoir, não existe uma natureza feminina pré-determinada; a mulher pode se tornar o que ela quiser – inclusive mãe e dona de casa, se essa for a sua escolha, e não simplesmente por ser mulher. É no livro O Segundo Sexo que está a tão famosa frase: “Não se nasce mulher, torna-se mulher.”

“Como uma obra inacabada, ela mesma ainda estava se tornando Beauvoir, e na tentativa de entender sua própria experiência, ela se deu conta de que alguns dos obstáculos que enfrentava eram ameaças endêmicas ao desenvolvimento de outras mulheres também. (…) Ela argumentava que não era a biologia, a psicologia e a economia que determinavam que as mulheres tinham que viver uma vida separada da dos homens, ou submissas a eles; a ‘civilização’ também desempenhava um papel significativo. (…) Suas pesquisas mostraram que, embora muitas mulheres desfrutassem da maternidade, elas não queriam que fosse o único projeto de sua vida.”

Simone sempre buscou uma filosofia segundo a qual pudesse viver. E utilizou questões presentes em sua própria vida para argumentar sobre a condição da mulher na sociedade. Anos depois, reconheceu que O Segundo Sexo não era uma obra completa, porque não levava em consideração, por exemplo, a condição da mulher negra, que sofre não apenas com o sexismo, mas também com o racismo (opressão múltipla, que os estudiosos chamam de interseccionalidade). No entanto, segundo Kirkpatrick, não há dúvida de que tanto a obra de Beauvoir quanto a sua atuação na sociedade contribuíram para que houvesse avanços na política francesa, no que diz respeito aos direitos das mulheres. Hoje, O Segundo Sexo é considerado um clássico, quase uma “Bíblia” do feminismo.

A visão de um lugar secundário de Beauvoir em relação a Sartre tem a ver com a cultura sexista, mas também com seus escritos autobiográficos, nos quais ela própria se colocava em segundo lugar, inclusive dizendo que ele era filósofo e ela, não. Mas Kate Kirkpatrick mostra que em suas memórias Simone optou por modificar e omitir muitas informações, transmitindo o que, segundo ela, era uma “verdade literária”, com o objetivo de mostrar aos seus leitores o que era viver existencialmente: não havia um caminho pré-determinado que ela deveria seguir; mas um projeto criado por ela e seguido durante toda a sua vida, para que se tornasse Simone de Beauvoir.

O livro de Kate Kirkpatrick cumpre seu objetivo de mostrar como Simone se tornou ela mesma (em inglês, o livro se chama Becoming Beauvoir), seguindo firme em seu propósito inicial de “refletir e questionar eternamente os valores de sua sociedade e o significado de sua vida”, mesmo enfrentando preconceitos e sendo duramente criticada e atacada por expor a desigualdade com que a sociedade trata os homens e as mulheres.

A edição brasileira de Simone de Beauvoir: uma vida foi lançada em 2020 pela editora Planeta, com tradução de Sandra Martha Dolinsky. É uma pena que o volume possua muitos erros de revisão, que não chegam a prejudicar a leitura, mas, com certeza, saltam até aos olhos menos atentos. O livro merece um cuidado maior. Melhorias que podem ser feitas para uma nova edição.

Livro: Simone de Beauvoir: uma vida
Autora: Kate Kirkpatrick
Tradução: Sandra Martha Dolinsky
Editora: Crítica (Planeta)
Páginas: 416
Nota: 4.5 (de 5)

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