Com 70 anos de carreira e 84 anos de idade, o extraordinário Walter Firmo é um dos profissionais mais sensíveis da fotografia brasileira. Jovial e cheio de vitalidade, Firmo não gosta de ser chamado de senhor. Não que desdenhe a velhice mas porque tem alma de garoto, garoto do bairro de Irajá, na Zona Norte do Rio de Janeiro, onde foi criado. Ele brindou os amantes da fotografia com uma deliciosa entrevista à coluna Ecoa, do site Uol, na qual discorreu sobre a sua infância, juventude e longa trajetória profissional.
O olhar penetrante e humano de Walter Firmo fez dele um dos maiores documentaristas da vida e da diáspora negras no Brasil e no mundo. Foram centenas de fotos icônicas registrando pessoas e o seu cotidiano, manifestações culturais e afetos da população negra.
Com mais de 140 mil fotografias em sistema de comodato com o Instituto Moreira Salles (IMS) Paulista, o fotógrafo segue agora com uma nova exposição na sede da famosa instituição, onde estão sendo apresentadas 260 imagens de sua autoria, desde 30 de abril. Imperdível.
Uma infância suburbana
Firmo conta que o bairro de Irajá era um paraíso na terra, onde podia desfrutar das companhias da avó, das crianças da vizinhança e da população suburbana preponderantemente negra. A inauguração do Maracanã e a Copa de 1950 são duas caras lembranças da sua memória de adolescência. Até o fim dos 1950, o garoto de Irajá circulava apenas entre o subúrbio e a Cinelândia, no centro. A Zona Sul da cidade só foi por ele visitada quando começou a trabalhar no jornal Última Hora, do jornalista Samuel Wainer, ainda como aprendiz.
O trabalho do fotógrafo piauiense José Medeiros (1921-1990), na revista O Cruzeiro, dos Diários Associados, despertou no jovem Firmo a paixão pela fotografia. Medeiros era um fotógrafo cosmopolita e gostava de fotografar tudo o que lhe chamasse atenção. Era isso que atraia o jovem que tinha sede de aventura e gosto pelo simples. José Medeiros foi um encantador do olhar alheio através das imagens. Foi o seu olhar mambembe que renovou a linguagem do fotojornalismo no Brasil, a partir dos anos 1940.
Inspirado em um mestre de tamanha envergadura, Walter Firmo começou a fotografar aos 15 anos. A mãe foi contra. Era branca, de família portuguesa e da classe média paraense, por isso queria um filho advogado. O pai de Firmo, por outro lado, foi o grande apoiador e o responsável pelo Brasil ter hoje esse baluarte da fotografia internacional.
O velho era também paraense. De origem pobre, era negro e ribeirinho, nascido em uma palafita à beira do Rio Amazonas, em Monte Alegre, município próximo a Santarém. Foi na Marinha, onde se tornou oficial, que o pai de Firmo começou a conhecer o mundo e dar vazão ao seu espírito aventureiro, que acabou por influenciar o filho. Foi ele quem deu ao jovem uma câmera fotográfica Rolleiflex, comprada em Hamburgo, na Alemanha.
Mesmo tendo que fugir de casa e ter tido que se abrigar na casa de um tio, por conta da contrariedade da mãe, o aprendiz de fotógrafo já sabia pelo que batia o seu coração. E, após 4 dias de “exílio”, a paz entre mãe e filho foi selada. A partir daí, o destino e muito empenho trabalham na construção do lendário Walter Firmo.
A influência paterna não se restringiu apenas ao sentimento de aventura e ao incentivo à fotografia. Sem querer, o pai de Firmo ao lhe propor uma visita ao seu lugar de nascimento, despertou-lhe uma sensibilidade social, a qual ele revestiu de poesia imagética ao longo dos anos. O garoto, então, com apenas 17 anos, voltaria inúmeras vezes à região, onde ainda se encontravam familiares seus.
Um ano mais tarde, aos 18 e depois de cumprir o Serviço Militar Obrigatório, Walter Firmo foi contratado como fotógrafo do jornal Última Hora, em tempo integral e ganhando um bom salário. Em 1960, foi convidado para trabalhar no Jornal do Brasil, que passava por uma reformulação. Nos anos posteriores, trabalharia também nas revistas Realidade e Manchete, que deram à fotografia um destaque importante.
Foi no JB, que Firmo deu um passo importante em sua carreira. A publicação tinha como chefe de redação outra lenda do jornalismo nacional, Alberto Dines, a quem Firmo propôs percorrer cidades e povoações ribeirinhas do Amazonas e do Solimões, para a documentação das paisagens, das populações e das realidades socioeconômicas locais. Alberto Dines aprovou a ideia. E, em 1964, as reportagens produzidas pelo Jornal do Brasil, com fotografias e texto de Walter Firmo venceram o Prêmio Esso. Firmo tinha apenas 26 anos e gostava de escrever – era apaixonado por Machado de Assis, Lima Barreto e Nelson Rodrigues – mas constatou que a escrita atrapalhava o clique. “Perdi muitas fotos escrevendo“, disse contrariado ao site.
Aos 30 anos, Firmo, que trabalhava na revista Manchete, foi enviado à Nova York como correspondente internacional. O ano era 1967, e a América e boa parte da Europa eram sacudidas por manifestações em prol dos Direitos Civis. A experiência foi única para o fotógrafo, pois de lá voltaria bastante mudado, e não somente por ter tido contato com fotógrafos como Gordon Parks, mas também por sentir na pele que os ambientes de redação não são diferentes da realidade que os cercam.
Durante o período no exterior, Walter Firmo que, até então circulava pela vida social carioca e brasileira sem grandes resistências, passou por uma situação por demais desconcertante. Um colega da revista Manchete enviou um fax à sucursal norte-americana afirmando não compreender como a revista enviou como correspondente um “mau profissional, analfabeto e negro“. O chefe de redação mostrou a mensagem a Firmo, que ficou indignado. “Aí caiu a ficha. No Brasil, nunca pensei que eu fosse negro, pra mim era tudo igual. Era muito ingênuo. É uma questão de consciência também: me descobri político e politizei a minha vida“, comentou o fotógrafo à coluna.
A ebulição que assaltava as ruas de Nova Iorque e outras cidades americanas, tomou as veias de Firmo, que, ao chegar ao Brasil, adotou o penteado afro e passou a retratar os ícones negros da música brasileira. Foi, entre 1960 e 1970, que ele produziu os marcantes retratos de Pixinguinha, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara e tantos outros. Sem querer ou ter clareza produziu um “manifesto silencioso”. Mas a ideia de fotografar tais figuras emblemáticas vinha de outra cabeça, a mesma que deu a primeira máquina fotográfica a Firmo: o seu pai. Ele, que era fã de Cartola, havia pedido ao filho que tirasse uma foto do cantor, além de conseguir um autógrafo. Isso foi, em 1961, antes do Prêmio Esso, da viagem à América e da experiência de racismo na Manchete. Nessa época, Walter Firmo desconhecia quem era Angenor de Oliveira. Anos depois o consagraria.
A estada de seis meses, em Nova Iorque produziu vários frutos. Entre eles, a ideia a plantada por seu pai de documentar os artistas brasileiros. Firmo passou a frequentar o Zicartola, restaurante de Cartola e Dona Zica, na rua da Carioca, no centro do Rio, onde toda a roda artística e intelectual da cidade se reunia para beber e comer enquanto ouviam e cantavam o bom e velho samba.
Não tardou e Walter Firmo já estava em presença de Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Ismael Silva e Clementina de Jesus. “Começou ali uma amizade minha com eles, eu entrei pra família da negritude. Mesmo sendo ‘pouca tinta’, eles achavam que eu era deles e me colocavam no colo“, disse Walter Firmo ao site. Foi nessa época que ele começou a fotografá-los, ainda sem ter clareza sobre o projeto estético e político iniciado no final dos anos de 1960. De lá, até o presente, a valorização da negritude foi registrada com afinco, durante visitas a favelas, fábricas e festas populares em diferentes cidades do Brasil e do exterior.
No caso das festas populares, Walter Firmo realizou, a partir dos anos 1970, um trabalho extenso não das celebrações em si, mas do seu entorno, transformando aquilo que para a maioria das pessoas passa despercebido, em algo digno de registro e eternização. Com um olhar de midas, Walter Firmo consagrou e foi consagrado pela gente simples de todo o Brasil e por todos os lugares por onde passou. Se a fotografia é arte de saber desenhar com a luz, Firmo é um artista que capta e usa luz para retratar paisagens e as mais variadas expressões humanas, inclusive a que não se vê a olho nu: a alma.