O abastecimento urbano de gêneros alimentícios recebeu profundas transformações a partir das últimas décadas do século XIX, como resultado direto da Revolução Industrial.
O Brasil colonial utilizava as feiras livres, expressas no Regimento de Tomé de Souza, de 1548, que se perpetuaram pelos tempos seguintes:
E assim ordenareis que, nas ditas vilas e povoações, se faça em
um dia de cada semana, ou mais, se vos parecerem necessários, feira, a
que os gentios possam vir vender o que tiverem e quiserem, e comprar
o que houver mister.
Surgiram arraiais, vilas, cidades, com eles armazéns e as populares vendas providos de gêneros variados para atender às necessidades imediatas daquela população.
Os hortifrutigranjeiros eram comercializados nas vias públicas, aos cuidados das negras quitandeiras, grupo reconhecido oficialmente pelo seu importante trabalho junto aos moradores que, diariamente, circulavam pelos espaços urbanos com seus tabuleiros, entoando rimas em seus pregões, alguns deles que vararam séculos.
Segundo o pesquisador Vieira de Freitas, o termo kitanda é originário da região centro-ocidental da África, utilizado para denominar suas feiras e mercados de rua, praticado quase exclusivamente por mulheres. Com a colonização portuguesa, o termo quitanda adquiriu significado semelhante, aplicado a feiras, mercados ou mesmo uma pequena loja e assim chegou ao território luso-brasileiro.
Com o crescimento das cidades e as medidas sanitaristas, atividades ambulantes foram severamente perseguidas e as necessidades de abastecimento fixo aumentavam à medida que os limites urbanos se expandiam, como ocorreu nos primeiros anos da República.
A cidade do Rio de Janeiro, na segunda década dos oitocentos, assistiu à ocupação de novas áreas, novas freguesias, um contingente carente de produtos cotidianos básicos, entre eles, os alimentos.
Nestes novos bairros cariocas reproduzia-se a prática dos antigos arraiais e algumas vendas eram implantadas, futuros armazéns de secos e molhados, com seus interiores de aspecto muito singular, que permanece na memória de gerações com mais de sessenta anos: portas altas, de enrolar, grandes sacos de grãos distribuídos pelo salão sobre piso de ladrilhos hidráulicos, um grande balcão de madeira, alguns com vitrine, com tampos de mármore, onde os produtos eram pesados, embrulhados, engarrafados ou simplesmente servidos em pequenos copos de vidro, para aquecer com uma boa cachaça, jeropiga, bagaceira, conforme o gosto ou as posses do freguês.
Nas paredes de fundo, gigantescos armários envidraçados, repleto de produtos variados, organizados conforme suas características. Uma escada de madeira, muito alta, apoiada num trilho horizontal superior, permitia o acesso do balconista, para o encantamento das crianças por aquela estripulia circense do trapezista do armazém.
Noel Rosa, em sua paródia Seu Zé, em 1935, criticava a prática de alguns proprietários gananciosos, cantando que viu num armazém de Cascadura, Seu Zé vendendo a mil e cem, trezentos réis de rapadura. No entanto, a maioria era tão amistosa que se tornava familiar, agregando o nome do dono ao estabelecimento. A confiança recíproca se revelava nas contas anotadas nos cadernos, quitadas semanalmente ou mensalmente pela assídua freguesia, ainda que os cartazes anunciassem que as “vendas eram à vista”.
Poucos estabelecimentos mantiveram aquela ambiência até as primeiras décadas do século XIX, como a Casa Lidador ou o Bar Flora, ambos fechados, ou a remanescente e tradicional Casa Paladino, uma feliz conjugação de armazém e botequim, todos no Centro do Rio.
No entanto, não era prática comum aos armazéns a comercialização de produtos frescos, frutas, verduras, ovos, às vezes queijo e leite, alguns poucos não perecíveis de primeira necessidade. Esta lacuna era preenchida pelas inesquecíveis quitandas da infância de muitos, de onde o quitandeiro levava cheiro e tomate, como cantou Monarco.
Por quase toda a cidade, cada bairro contava com a sua, muitas vezes próxima à padaria e um botequim da região. Esta tríade permaneceu por muitas décadas a atender pais, mães e avós numa emergência, fornecendo aquele fermento de última hora para o bolo prestes a entrar no forno, aquele litro de refrigerante dominical para uma visita inesperada, aquele tijolo de sorvete para aplacar o calor das noites suburbanas de verão.
No dia a dia, a quitanda era um verdadeiro suplício para a garotada, principalmente quando obrigada a interromper seus compromissos inadiáveis, como um pique-bandeira, carniça, jogos de botões ou tantas outras brincadeiras coletivas infantis, nas ruas arborizadas e pavimentadas por paralelepípedos, depois sufocadas pelo concreto dos playgrounds. Uma chamada solicitava os préstimos para meia dúzia de ovos de última hora, um ramo de coentro ou hortelã, meia dúzia de laranjas peras.
Mal-humorados, lá íamos nós até aquelas duas ou três portas, geralmente de um edifício térreo, com o comércio à frente e a residência aos fundos, junto ao quintal, onde morava o proprietário, sempre pronto a atender mesmo nos domingos e feriados.
Dinheiro enrolado na mão ou mesmo um aviso para incluir mais um débito no caderno de despesas da família, produto comprado e retorno às intermináveis distrações.
No início da década de 1950 houve a iniciativa de implantação do primeiro supermercado no Brasil, em São Paulo, denominado “Sirva-se”, na rua da Consolação. Era o princípio da decadência daqueles estabelecimentos e o surgimento de um novo personagem urbano que, em curto prazo, se tornaria um dos protagonistas da sociedade de consumo.
Surgiram lentamente, com nomes sugestivos, precedidos de “Casas”, “Organizações”, indicando sua associação com a residência e seus antecessores. Sua aparência inicial remetia aos conhecidos armazéns, guardando um atendimento pessoal e produtos vendidos a varejo, por quilo ou unidade, diminuindo a desconfiança dos fregueses, futuros clientes, como seriam tratados em breve, quando a cidade, quase sempre autofágica, devorasse outro integrante para se identificar com ideais de progresso ou modernidade.
A Revista do Empresário, em sua edição de 1979, registrava que os Supermercados Disco foi uma das primeiras redes implantadas no Rio de Janeiro, com a inauguração da loja de Copacabana, em 1952, sucedida por outras empresas como as Casas da Banha, Mercearias Nacionais ou a dona de casa dos pegue-pagues do mundo, na voz de Raul Seixas, todas com atividades encerradas.
A propaganda maciça no rádio e na televisão, com jingles envolventes, anunciavam que tudo era planejado para proporcionar aos clientes “garantia de qualidade, rapidez, conforto e economia”, além da oportunidade inovadora de escolher seus próprios produtos dispostos nas gôndolas ou em balcões frigoríficos, colocados nos carrinhos de compras e encaminhados às caixas para pagamento unificado. Tudo num mesmo lugar, sem sequer cogitar os futuros supermercados digitais!
Vendas, armazéns, quitandas, com raríssimas exceções, tornavam-se personagens de memória, presentes em antigos álbuns da infância que ainda teimam em registrar até que se tornem apenas uma curiosa e efêmera peça de ficção em redes sociais, cujas denominações poderão sugerir um código cifrado de comunicação entre os mais velhos.
Uma bela materia que me fez voltar ao passado não muito distante .
Esse foi um tempo muito feliz e que me traz grandes lembranças: a quitanda da dona Anita, o botequim do Sr. João, a farmácia do Elomir, o açougue do Fernando, o armazém do Carlos português, o armarinho do Jorge turco, tudo muito familiar. Infelizmente acabaram com tudo isso em detrimento dos supermercados e Shoping Centers. A frieza destes novos estabelecimentos me incomodam.