William Bittar: Sobre botequins do Rio

Cada cultura tem seu próprio botequim. No entanto é possível considerar que este estabelecimento é uma criação bem brasileira, carioca

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Bar do Adonis

Meu coração tem butiquins imundos,
Antros de ronda, vinte-e-um, purrinha,
Onde trêmulas mãos de vagabundo
Batucam samba-enredo na caixinha.

Bosco e Blanc

Cada cultura tem seu próprio botequim. No entanto é possível considerar que este estabelecimento é uma criação bem brasileira, tornando-se uma verdadeira instituição, ainda que muito alterada ao longo das décadas.

Talvez seja no Rio de Janeiro que ele tenha adquirido suas características mais particulares e dali exportado para o Brasil, através da poesia e da música popular, como cantava Noel Rosa

Seu garçom faça o favor

De me trazer depressa

Uma boa média que não seja requentada

Um pão bem quente com manteiga à beça

Assim como muitos de nós tivemos nossa padaria, açougue ou quitanda de infância, temos também nosso botequim de juventude, aquele ponto de encontro inicialmente para o refresco colorido ou refrigerante do Seu Abílio, mais tarde cervejas com tremoços e outros aperitivos, até o consumo do popular “Dudu”, aquele traçado de quinado com conhaque para esquentar depois de uma chuvarada.

Quanto à origem do nome, existem muitas versões, remetendo àquelas mais eruditas, como bottega, do italiano, que veio do grego apotheke, traduzidos por armazém ou depósito, bodega, na Espanha, ou botica, em Portugal, para o comércio de secos e molhados, todos vendendo comida e bebidas e assim chegaram ao Brasil, pelas mãos dos imigrantes ibéricos, para atender às crescentes demandas da urbanização a partir do final do século XIX.

As antigas casas de pasto, origem dos restaurantes e as tavernas, presentes no período imperial, conhecidas pela má fama de seus habituais frequentadores, tornavam-se armazéns e alguns deles transformavam-se nos botequins, onde a clientela se reunia para um trago e colocar a prosa em dia, muitas vezes acompanhado de alguns aperitivos

Assim como os bistrôs representam a França, os pubs, a Inglaterra, as casas de tapas, a Espanha, as tascas, Portugal, o Rio de Janeiro tornou-se reduto dos botequins, alguns deles famosos em todo o mundo.

Antes mesmo da modernização dos hábitos, transformando-os em programas mais elegantes ou cults, eram representações de bairros ou grupos sociais: sambistas, intelectuais, políticos, ou simplesmente aquele local para “jogar conversa fora”, discutir o futebol do dia anterior, tomar mais uma e, sem noção de limites, lançar longos e cobiçosos olhares para as mulheres que se dirigiam ao trabalho, à escola ou simplesmente num doce balanço a caminho do mar.

Muitas vezes, frequentadores movidos pelos eflúvios etílicos ou pela obsoleta tradição machista nacional emitiam ruídos obscenos ou o indefectível “fiu-fiu”, diziam gracejos de mau gosto, camisa semiaberta, coçando a barriga, palito no canto da boca… – Ô, gostosa!…, para a fúria justa das meninas diante da agressão. Aqueles mais “elegantes utilizavam frases tão clichês que por vezes conseguiam roubar algum sorriso contido no canto da boca.

Se uma formiguinha te picar, não se assuste, porque você é um doce!

É errado falar com você sem te conhecer. Mas eu sempre tive uma queda por erros.

Você tem um mapa? Acabei de me perder te olhando.

Não fique triste, fique comigo!

Eu sabia que te conhecia de algum lugar… Dos meus sonhos!

É possível que a expansão dos botequins esteja associada às mudanças ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, principalmente após as grandes reformas urbanas promovidas pelo Prefeito Pereira Passos, na primeira década do século XX.

Na nova região central, além dos botequins, surgiram cafés e confeitarias para atender à pequena burguesia que saía às ruas, circulando pela Ouvidor e vizinhança. Nos bairros das regiões norte ou sul, armazéns proliferavam para abastecer a clientela e alguns tornavam-se também botequins populares, alguns deles no térreo de um sobrado, cujo pavimento superior era residência do proprietário.

Muitos adotavam o antigo esquema do lote estreito colonial, onde o comércio ficava à frente e a moradia aos fundos, junto ao quintal, reduto familiar com roupas quarando ao sol, um discreto galinheiro, senhoras lusitanas com seus sotaques e suas rezas para quebranto ou espinhela caída, avós Marias, Manuelas, Adelaides, uma para cada recordação.

Internamente, dependendo da área útil do salão, era possível encontrar poucas mesas de pés de ferro ou madeira, tampos de mármore, que também compunha o balcão principal. Na parede de fundo, prateleiras dividiam o espaço com aquelas tradicionais e inesquecíveis geladeiras à feição de pequenos frigoríficos, com suas pesadas portas de madeira e trincos dourados a estalar quando movimentados, precedendo o baque no ato de fechar.

Inesquecível o aroma do vinho ou jurubeba retirados dos barris, do torresmo ou porções de linguiça fritos… Atrás dos balcões, Antonios, Joaquins, Manoéis, Fernandos, muitos com suas camisetas brancas ou a extinta camisa garrafeiro, lápis na orelha e pano no ombro, para a eterna limpeza dos mármores polidos pelo uso.

Além daqueles do bairro de infância, alguns providos até de um telefone preto de fichas, cujo sinal demorava a eternidade e um dia, mas era salvação de toda vizinhança, com o passar dos anos e o gradativo aumento da distância de casa, outros horizontes surgiam.

Muitos botequins tornaram-se referência cultural, transformando-se em bares e restaurantes, confundindo-se com a própria história boêmia da cidade. Um desses, que tive a satisfação de conhecer em seus primórdios, foi o Bar Adonis, em Benfica, famoso pelos seus bolinhos de bacalhau e cerveja gelada, reduto de jogadores de futebol na década de 1970, muitos craques que não posavam de celebridades instantâneas; na Lapa, o Bar Brasil, fundado em 1907, além do cardápio usual, oferecia comida alemã; no mesmo bairro, com mais de 70 anos de existência, a Adega Flor de Coimbra, com seu vinho para acompanhar o  bolinho de bacalhau charutinho, nem por isso menos crocante;  em Santa Tereza, o Armazém São Thiago, botequim como atividade, desde a década de 1920 atendia à clientela; na terra da velha guarda do samba, Oswaldo Cruz, o Bar Sobral era o reduto da cultura suburbana; em Ramos, desde a década de 1970, o Bar da Portuguesa oferece seus saborosos petiscos; fundado em 1874 no Largo do Machado, depois mudando o endereço, estava o Bar Lamas, a casa que a tradição atribuía não ter portas, pois nunca fechava….

Afinal, cantava Nara Leão, o samba de Zé Kéti e Hortêncio Rocha

Em qualquer esquina, eu paro
Em qualquer botequim, eu entro
E se houver motivo é mais um samba que eu faço

Algumas casas resistiram ao tempo, às novidades da contemporaneidade. No entanto, surgiu a concorrência dos simulacros de botequins, competições de suas comidas, cópias da forma, mas jamais do conteúdo, pois naqueles originais, com todo o saudosismo, estava o genius loci. Aquele espírito do lugar é irreproduzível, identidade que falta nestes novos cenários superficiais, ambientes destinados a mais uma opção de lazer, sem uma arraigada relação entre seus frequentadores, sem a pinga pro santo, com denominações que incorporaram apelidos consagrados como pé-sujo, bunda-de-fora, senta-em-pé.  Se apropriam da imagem como produto de consumo, no entanto não mais contam com aquele balconista com a camisa garrafeiro, vasta bigodeira e pano de prato no ombro, para quem chegávamos e pedíamos diretamente: o de sempre!

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.

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