O “Degrau” era um dos bares tradicionais em que a boemia artística e intelectual carioca se reunia nas madrugadas na zona sul do Rio de Janeiro, nos anos 60 e 70.
O bar e restaurante foi fundado em 1963, com o nome “Progresso”. Em sua localização original, no outro lado da Av. Ataulfo de Paiva, no Leblon.
Entre os habitués havia a turma do cartunista do jornal “O Globo”, Otélo Caçador: Luiz Jatobá, Silveira Sampaio, Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, Ary Barroso, Sérgio Porto, Antônio Maria e Lúcio Rangel, entre outros.
Havia um degrau na entrada que todo mundo tropeçava. Em uma entrevista que fizemos – eu, Jaguar, Ferreth, Leonardo e Ykenga -, no próprio bar, com Otélo, ele contou:
“Eu marcava encontro com o Lúcio Rangel e dizia: ‘Lá no “Degrau”. Aquele bar que tem um degrau.’ Porque tinha um degrau que todo mundo caía, ou na entrada ou na saída. O que “inspirou” o novo nome, adotado oficialmente pelos donos, em 1970”.
Além da turma do Otélo, frequentavam o boteco nomes como Jaguar, Ronald de Chevalier, o Roniquito, irmão de Scarlet Moon, ex-mulher do cantor Lulu Santos; o escritor Carlinhos Oliveira e, o mais famoso deles, o cantor João Gilberto.
Com fama de recluso, João Gilberto pouco aparecia no bar. Ele mal saía de casa. Poucos vizinhos, na Rua Carlos Góis, no Leblon, sabiam que o músico morava no apartamento 802. Menos pessoas ainda tiveram a chance de vê-lo nas ruas do bairro. Naquela época, os repórteres faziam vigília na portaria do prédio, no dia do aniversário dele. Mas não adiantava nada, porque ele nunca aparecia.
O “Degrau” era o bar preferido do artista. João Gilberto almoçou e jantou lá por mais de 40 anos. Não pessoalmente. Todos os dias, ele ligava para o local e pedia suas refeições à mesma pessoa: Sebastião Alves, seu garçom favorito no restaurante. Depois de quatro décadas – com uma paixão em comum, o Vasco da Gama – eles se tornaram amigos.
Tiãozinho – como o cantor costumava chamá-lo – lembra da última refeição do artista:
“Na véspera de sua morte, ele pediu salmão no almoço e filé com arroz e feijão no jantar. Cheguei a falar com ele uma hora antes dele morrer. Era uma pessoa muito bacana e carinhosa. Quando eu deixava a comida, ele fazia questão de esperar a porta do elevador fechar para depois fechar a porta de casa”, relembra.
O ‘pai’ da Bossa Nova tinha suas extravagâncias. Até pouco tempo antes de sua morte, João costumava pedir até três garrafas por dia de Pêra Manca, um vinho português cuja garrafa custava R$ 398 no “Degrau”.
No ‘Degrau’, histórias não faltavam. Uma dessas histórias, conta a briga entre Otélo e Roniquito:
Roniquito era tão corajoso quanto frágil fisicamente. Em uma briga que teve com o cartunista levou a maior surra de sua vida. Enquanto espancava Roniquito, Otélo perguntou-lhe: “Chega ou quer mais?”. E Roniquito, no chão, com o sapato do Otélo sobre seu pescoço, ainda conseguiu olhar para cima e articular: “Cansou, filho da puta?”.
Outra que se passou no “Degrau” – o humorista Luiz Carlos Miéle, diz que foi no ‘Antonio’ s’. Mas, quem me contou foi o cartunista Jaguar, outro sobrevivente daquela brava geração etílica. Então, foi no “Degrau”.
“Ele era um suicida”, define o cartunista. “Quando não tinha ninguém para esculhambar, esculhambava o copo”, exagera. Certa vez estavamos os dois sentados no bar “Degrau”, depois de extensa via-sacra pelos botecos da Zona Sul, quando se aproximou da mesa uma madame falando maravilhas de um espetáculo que acabara de assistir, do coreógrafo Maurice Béjart. “Eu amo Béjart, ele é divino”, dizia.
Roniquito, possuído, desbancou a granfina: “Eu acho Béjart uma merda, eu gosto é de Fudet”.
A madame, indignada:
Que grossura! Estou falando do coreógrafo Maurice Béjart!
E Roniquito na maior candura:
E eu do bailarino Pierre Foudet!
Evidentemente, só ele conhecia o tal bailarino.
No ano passado, o bar pegou fogo. Nada muito grave. Nem o fogo foi capaz de apagar as histórias do “Degrau”.
O bar reabriu logo depois.