Let’s hope it’s a good one
Without any fear
J. Lennon
Rituais que marcam a passagem do tempo, as mudanças de estação ou fechamento de ciclos estão presentes ao longo da história do ser humano, antes da contagem formal de meses e ano.
Cada cultura, religião ou grupo familiar apresentam particularidades para celebrar este momento. Quando criança, minha avó contava uma história para todos os muitos netos, levando-nos a olhar, admirados, o céu à meia-noite. Duas grandes esferas avermelhadas se cruzariam, marcando a despedida do ano velho e a entrada do ano novo. Depois, os fogos barulhentos e coloridos cobriam o céu, antecipando as comilanças da ceia.
Por muitos anos, todos nós materializamos aquela ilusão e certamente, ao longo da vida, carregaríamos a dúvida sobre a mágica visão. Alguns de nós, certamente, ainda deve olhar o céu de soslaio, à meia-noite, disfarçando ao procurar aquele fenômeno de nossa avoternidade.
A celebração do Ano Novo, iniciada no réveillon do dia 31 de dezembro, se inclui nestas comemorações, oficializada por ocasião do estabelecimento do calendário gregoriano, no século XVI, utilizado por grande parte do planeta, principalmente o mundo cristão.
O Réveillon, que pode ser traduzido do francês como “despertar”,tornou-se a véspera da passagem de ano, assinalando o início de um novo ciclo, celebrado em diferentes manifestações ao redor do mundo.
O Brasil incorporou as festividades de “Ano Bom”, como é popularmente denominado, desde o período colonial, por influência lusa, praticamente indissociáveis do Natal, sob o título abrangente de “Boas Festas”.
O predomínio da sociedade rural gerava manifestações singulares, como a renovação das roupas dos senhores e cativos e dos instrumentos de trabalho na terra. Os povos africanos, à sua maneira, também celebravam o final de um ciclo, evocando as entidades de seu panteão religioso.
Havia a Missa do Galo, instituída no século V, celebrada na véspera do Natal, um momento de introspecção e reflexão. Uma semana depois, os festejos de fisionomia pagã recebem o ano que se inicia: músicas, danças, fogos, bebidas.
O sincretismo religioso, sempre presente na formação da cultura brasileira, se apresentou com a prática de passar a festa de réveillon utilizando roupa branca, uma influência direta dos cultos afros, predominantemente da umbanda.
O Diário do Rio já publicou algumas colunas, assinadas por Felipe Lucena, sobre a história do réveillon em Copacabana, incluindo imagens muito significativas. No Rio de Janeiro, desde a década de 1960, as areias das praias cariocas, principalmente aquelas mais conhecidas no mundo, recebiam praticantes de diversas crenças, a maioria de roupa branca, agradecendo as graças recebidas no ano que findava.
Muitos optavam pela virada do ano junto ao mar, dedicando oferendas, como flores e perfumes, dispostos em barcos, para Iemanjá, orixá africano que representa a força das águas. Como o Rio de Janeiro é uma cidade que dita modismos, esta prática disseminou-se e se consagrou por todo o país, praticamente criando um novo dia para este culto.
Tradicionalmente, Iemanjá é celebrada no dia 02 de fevereiro, consagrado a Nossa Senhora dos Navegantes, ocasião de grandes festas na Bahia, ou 15 de agosto, dedicado a Nossa Senhora da Glória, mas a popularização das comemorações nas praias acabaram por incluir o dia 31 de dezembro neste calendário.
Até a implantação do réveillon oficial na praia de Copacabana, organizado pelo poder público, as areias eram ocupadas por terreiros de umbanda ou candomblé, que ali realizavam seus rituais de agradecimento e oferendas, iniciados no final da tarde e se prolongando até a meia-noite, quando os barcos eram colocados no mar, carregando os presentes para Iemanjá, também conhecida como a Rainha do Mar.
Ali os médiuns incorporavam entidades: caboclos, pretos velhos, povo da rua ou vibrações dos próprios orixás. Ouviam pedidos e agradecimentos, davam passes para “limpar” ou atrair bons fluidos para quem assim os desejasse.
Registra a tradição que a primeira grande queima de fogos foi organizada pela churrascaria Marius, em 1978, com verba de comerciantes da região. Alguns anos após, um dos mais altos edifícios da orla, o extinto Hotel Méridien, promoveu uma cascata de fogos pelos 39 pavimentos de suas fachadas.
Os eventos da orla passaram a atrair um grande público, de todos os pontos da cidade e vizinhança, para assistir à grande queima de fogos, realizada da areia. No entanto, a dispersão da multidão que ocorria ao final do show pirotécnico, acabou por gerar filas intermináveis e muitos tumultos nos pontos de ônibus.
Em 1993, para distribuir melhor os frequentadores, a prefeitura do Rio iniciou uma programação de shows após o foguetório, definindo o Réveillon de Copacabana como evento no calendário turístico da cidade, afastando definitivamente a tradição dos cultos nas areias, com frequentadores em seus trajes brancos, agradecendo a Iemanjá.
Assim como ocorre com outras manifestações populares, o interesse pelo lucro através da exploração econômica eliminou uma tradição, substituindo-a por um evento planejado, que atrai milhões de turistas e dólares para a cidade, deixando as areias sem espaço para qualquer momento de prece ou reflexão.
A contagem regressiva, além de anunciar um Novo Ano, também marca o fim de mais uma tradição tão cara que materializava o próprio sincretismo do povo que cada vez se distancia das suas origens e da relação direta com sua cidade.
A inundação pirotécnica, barulhenta e luminosa que perdura por minutos, sucedida pelas nuvens de fumaça, escondem o céu e ocultam as esferas avermelhadas da infância, que anunciavam a chegada de uma nova era.
As primeiras horas do ano novo testemunham procissões profanas acumuladas nas escadas do metrô, nos pontos de ônibus, nas ruas, principalmente em Copacabana, onde muitos e muitos se perguntam por que estão ali, durante discussões, crianças perdidas, carteiras furtadas, pés cortados pelos cacos de garrafas…
De qualquer forma, o calendário gregoriano insiste em anunciar que todos devem ficar contentes porque é Ano Novo.
Que venham tempos melhores!
Amanhã
Mesmo que uns não queiram
Será de outros que esperam
Ver o dia raiar
Guilherme Arantes