No dia 08 de janeiro de 2023 o mundo civilizado assistiu, atônito, à invasão bárbara ocorrida ao coração político administrativo da democracia brasileira.
Tal atitude destrutiva já ocorrera em diversos momentos da história, como a iconoclastia bizantina, no século VII ou incitados por palavras e sugestões semelhantes àquelas de Savonarola, na Itália do século XV, na Idade Média.
A diferença fundamental reside no controle ou ausência de informações e esclarecimentos, protegidos e resguardados pelos poderes constituídos, políticos ou religiosos, dificultando o discernimento, situação absolutamente diversa da atual, quando é possível a apreensão e reflexão sobre as notícias, verificando sua veracidade.
A destruição voluntária de bens que integram um Patrimônio Cultural da Humanidade, reconhecido pela UNESCO, em 07 de dezembro de 1987, representante da arquitetura e urbanismo modernos, deve ser considerada como crime contra a Humanidade, perpetrado por uma associação de fanatismo e estupidez.
Agrava-se o ato quando aqueles que o praticam defendem princípios de patriotismo e liberdade, demonstrando seu desconhecimento destes e de quaisquer outros valores que compõe uma convivência civilizada.
Sequer é necessário discutir a subjetividade dos conceitos de “liberdade de expressão”, “livre manifestação” e “direito de ir e vir”, segundo a Constituição Brasileira, para imputação dos atos delinquentes.
Aplicar-lhes adjetivos com sufixos “istas”, em qualquer circunstância, é promover-lhes a um status que jamais possuirão, já que se encontram na categoria de criminosos comuns e como tais devem ser tratados, pois atacaram, mutilaram e destruíram deliberadamente integrantes do conjunto urbanístico-arquitetônico de Brasília, bens inscritos no Livro de Tombo Histórico do IPHAN, em 14 de março de 1990.
Segundo o Decreto-lei nº25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em seu art. 21, “os atentados cometidos contra os bens de que trata o art. 1º desta lei são
equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional”, portanto onde está o patriotismo insistentemente alardeado?
Além disso, a Lei nº 9605, de 12 de fevereiro de 1998, em seu capítulo V, que trata Dos Crimes contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural, art. 62, estabelece que destruir, inutilizar ou deteriorar:
I – bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial;
II – arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial:
Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena é de seis meses a um ano de detenção, sem prejuízo da multa.
A tipificação dos crimes está clara, independente de qualquer matiz ideológica, claramente manifesta exemplarmente quando se destrói dolosamente obras de arte ou arquitetura protegidas como Patrimônio Nacional.
É simbólica a violência à representação modernista como ocorreu ao quadro pintado por Emiliano Di Cavalcanti – As Mulatas, de 1962 – artista carioca que integrou o grupo que promoveu a Semana de Arte Moderna de 1922, atacado a facadas, que atingem o coração da democracia, que insiste em sobreviver.
A peça, exposta no Palácio do Planalto, está entre os muitos bens móveis ou imóveis, danificados, destruídos ou furtados (Código Penal, art. 155, §4º) pelos criminosos invasores dos edifícios da Praça dos Três Poderes, com prejuízos culturais acima de qualquer valor econômico, atos e agentes fartamente documentados em imagens, muitas delas produzidas pelos próprios diante de um mundo atônito.
O inventário dos danos, ainda em andamento, registra a fúria contra a arte, o conhecimento ou a cultura em geral, prática recorrente na administração anterior, enquanto armas são subtraídas, situação que não se apresenta nova em diferentes períodos da história da humanidade.
Na década de 1920 foi fundado, na Alemanha, o Partido Nacional Socialista que ao longo de sua trajetória oficial de 25 anos promoveu o combate ferrenho à produção modernista em efervescência, levando ao fechamento instituições extraordinárias como a BAUHAUS e perseguição implacável a artistas e obras consideradas “degeneradas” por seus líderes, algumas destruídas em público, acrescidas de pilhas de livros incinerados, considerados inadequados e perniciosos.
A Itália e União Soviética, a partir da mesma década, também desprezaram as vanguardas, censurando e perseguindo seus autores e obras, revalorizando a produção acadêmica, vinculada expressamente a um passado clássico como instrumentos de sua propaganda oficial.
Essa iconoclastia se repete ao vivo, aos olhos do planeta, em pleno Planalto Central, na capital do país que preserva sua democracia diante do turbilhão de estupidez revestida de nacionalismo.
Ali foram cometidos crimes passíveis de reclusão, conforme as leis vigentes no território nacional e seus agentes devem ser julgados e punidos, conforme a gravidade e participação nos delitos.
As manifestações explícitas de intolerância, fanatismo e estupidez ocorreram numa cidade criada durante importante período democrático da história política do país, impregnada de conceitos e sentimentos igualitários presentes em suas superquadras, edifícios públicos e na planta circular da Catedral, assim como As Mulatas, de Di Cavalcante, que se torna símbolo dessa ferida aberta no coração do Brasil.
Ainda que Brasília, na sua infância, tenha sofrido um golpe que alterou irreversivelmente sua trajetória como organismo social, germinando sementes diversas, algumas produzem o joio, que eventualmente ressurge, mas não conseguirá sufocar o trigo que alimenta o corpo e a alma da Democracia.