Quando recebi o convite para participar dessa blogagem coletiva, imediatamente lembrei da minha infância. No prédio onde eu morava, havia uma menina da minha idade, de nome Jaqueline, cuja família pobre do interior havia deixado a pequena na casa de uma família da capital, para que ela tivesse “melhor oportunidade” e pudesse estudar. Jac era franzina e desengonçada, como todas as meninas daquela idade.
Eu havia perdido minha mãe e era muito sozinha. Logo nos tornamos amigas e no pouco tempo livre que ela tinha para brincar, corríamos pelo quintal do prédio atrás de bonecas e brincadeiras de roda.
Jac tão pequena, já tinha uma grande responsabilidade: Era doméstica. Era ela que cuidava da casa onde morava, lavava, passava e cozinhava. Não recebia ajuda financeira, mas falava com orgulho que em breve estaria na escola, aprenderia a ler e seria professora. Aquilo não entrava na minha cabeça de jeito nenhum… Como uma menina da minha idade ainda não sabia ler, fazia serviços domésticos e não tinha tempo pra brincar?
Nessa época, para suprir a falta da minha mãe eu mergulhava na leitura. Era nos livros que eu vivia todas as minhas aventuras e esquecia da solidão. Jac me pedia para ler pra ela e gostava de dar palpite nas histórias. Imaginem, uma criança lendo pra outra… eram muitas risadas e papos sem pé nem cabeça.
Um dia, não me recordo a data, meu pai me presenteou com uma lousa e foi através dela que vivi uma das maiores emoções que me recordo. Como a lousa era grande, ficava do lado de fora do meu apartamento, num vão ao lado das escadas. Ali montamos nossa escolinha. Minha avó cedeu um banco para eu colocar os livros e assim dávamos aulas (eu e a Jac) para as bonecas.
Dividimos a lousa ao meio com um risco na vertical, um lado dela, um lado meu. Como não sabia escrever, Jac rabiscava e desenhava coisas, muitas vezes sem sentido. Ficava toda suja de giz, mas com olhos radiantes de felicidade porque ali era a tia Jac, professora.
Um dia me pediu para escrever seu nome. Jaqueline. Escrevi. E ela ficou contemplando aquilo por um bom tempo. No dia seguinte, a mesma coisa. J-a-q-u-e-l-i-n-e. E depois e depois e depois, até que um dia ela conseguiu reproduzir seu nome pela primeira vez. Um garrancho, mas dava pra entender. A partir dali, todo dia J-a-q-u-e-l-i-n-e invadia meu espaço na lousa comunitária.
A família que “cuidava” da Jac, não permitia que ela saísse para brincar sempre, afinal de contas ela tinha obrigações a cumprir, mas vez ou outra, ela escapava para nossa “escolinha”. O tempo passou e Jac foi finalmente matriculada na escola. Começou a ser alfabetizada e já reconhecia as letras. Nessa época a gente se via mais nos fins de semana, pois a dona da casa onde a Jac morava ficou doente e o serviço aumentou.
Vivemos essa amizade cerca de 3 anos. Até que um dia Jac veio me contar que iria embora. Apenas disse que seu pai estava doente e teria que ajudar sua mãe a cuidar dos irmãos.
E ela se foi. Me lembro bem… era feriado. Eu havia saído com meu pai e ao voltar pra casa avistei o carro indo ao longe com a Jac no banco de trás.
Claro que chorei! Chorei muito! E ao entrar no prédio aos prantos me deparei com nossa lousa comunitária, repleta de corações, com a palavra “Obrigado” ao centro.
E foi ali que entendi, o quanto a escola foi importante pra Jac e quanto a Jac foi importante pra mim!
Nunca mais nos vimos. Mas acredito que no pouco tempo que convivemos ela foi feliz. O trabalho doméstico era pesado e havia privações. Mesmo assim nunca foi bicho de sete cabeças pra ela, que estava mais que acostumada desde muito pequena a trabalhar e via aquilo como algo natural.
Mas a escola, ah… a escola! Ali ela foi feliz de verdade! Não precisava lavar, passar, cozinhar! Não haviam obrigações domésticas. Era livre para brincar, fazer amigos, se alfabetizou e finalmente aprendeu o significado da palavra infância.
E é com as lembranças da querida Jac, que o meu desejo hoje é ver TODAS as crianças matriculadas em escolas de qualidade, dignas, onde elas possam enxergar um bom futuro! Só assim venceremos a luta contra o trabalho infantil!
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