A história de conflitos não é recente na cidade do Rio de Janeiro. Balas perdidas também não. Em 1893, uma bala de canhão atingiu o topo da Igreja Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, na Rua do Ouvidor, no Centro da então capital federal. Entre um dos motivos para tamanho atentado poderíamos destacar, o amor ao poder.
A Revolta da Armada foi o pano de fundo contra a joia católica, de traços arquitetônicos nos estilos rococó e barroco. O imbróglio teve início com a renúncia de Deodoro da Fonseca cujo posto foi ocupado pelo vice-presidente Floriano Peixoto, conhecido como “Marechal de Ferro”.
Pela Constituição, uma nova eleição deveria ter sido realizada, mas fazendo jus à alcunha, Floriano Peixoto decidiu continuar no cargo. Fato que gerou a revolta de diversos generais da Marinha Mercante do Brasil, que queriam um reconhecimento semelhante ao do Exército. O “Marechal de Ferro”, por sua vez, não capitulou diante da revolta, dando voz de prisão aos líderes do levante. A resposta não tardou. A população do Rio de Janeiro viveria uma guerra.
No dia 6 de setembro de 1893, navios ocuparam as águas da costa da cidade e apontaram os seus canhões em direção à terra. Os disparos eram iminentes, o que deixou os populares em pânico. Os cidadãos que puderam fugir, assim o fizeram. Comerciantes fecharam os seus negócios. Ninguém esperava nada de bom. A cidade ficou deserta. Nas ruas vazias: medo e desespero daqueles que ficaram. O irremediável aconteceu e tiros foram trocados em diversos pontos pela cidade, até mesmo na Ponta da Armação, em Niterói.
Mas o pior ainda estava por vir e viria do mar. No 25 de setembro de 1893, por volta das 17h, do encouraçado Aquidabã partiu o tiro de canhão que atingiu a torre dos sinos da Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, que ruiu em parte com o impacto. Partes dos seus estilhaços atingiram um prédio vizinho, arrebentando paredes. Outros imóveis também foram atingidos.
Uma estátua de Nossa Senhora da Fé, que ocupava o topo da igreja despencou de uma altura de 25 metros. Milagrosamente, a imagem da santa, que tem quase dois metros de altura, só quebrou 2 dedinhos. O fato foi visto pelos fiéis da época como um milagre. Atualmente, a bala de canhão, juntamente com a imagem de Nossa Senhora da Fé, encontra-se em exposição na igrejinha, que foi totalmente revitalizada e reaberta ao público, em junho deste ano, depois de quase quatro anos fechada. A reinauguração contou com uma missa solene celebrada pelo Cardeal-Arcebispo Dom Orani Tempesta.
Com a decretação do Estado de Sítio, o conflito entre marinheiros e o governo migrou para Florianópolis, em Santa Catarina. A Revolta da Armada se desdobrava em novos e sangrentos conflitos. Já o Aquidabã, com seu histórico de participação em muitos conflitos, teve um trágico fim, em 1906, quando uma explosão no paiol exterminou mais de 100 tripulantes. A famosa embarcação, transformada em uma imensa bola de fogo, partiu-se ao meio e afundou, em Angra dos Reis.
A Igreja de Nossa Senhora da Lapa
A edificação está localizada na parte mais preservada do Rio Antigo, entre ruas estreitas, sobrados e prédios históricos, na Rua do Ouvidor, nº 35, no Centro do Rio de Janeiro, na esquina com a ruazinha do Arco do Teles. A edificação teve origem singela, com um simples oratório dedicado à santa. Foi somente, em 1747, que tiveram início as primeiras obras para construção do templo, que foi uma das primeiras construções tombadas Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
A igrejinha passou por muitos momentos difíceis ao longo da sua história, tendo sido interditada pela Defesa Civil por más condições de conservação. A edificação sofreu com a queda de um pedaço da sua fachada, o seu exterior estava deteriorado, com a pintura manchada e descascada. Buracos podiam ser vistos em alguns cantos do centenário monumento.
Diante da preciosidade histórica, cultural e religiosa, a Arquidiocese do Rio de Janeiro nomeou o empresário do ramo imobiliário, Cláudio André de Castro, como comissário administrativo da Irmandade dos Mercadores para devolver o brilho ao centenário templo. A partir de uma pesquisa criteriosa, foram realizadas todas as etapas de revitalização do prédio religioso. A recomposição da Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores foi rigorosamente ancorada nas normas estabelecidas pelo IPHAN.
Para que o processo fosse o mais fidedigno possível ao célebre passado da Igreja Nossa Senhora da Lapa, Cláudio de Castro e equipe utilizaram 70 negativos da década de 1920, encontrados pelo empresário na arrumação do espaço. Através deles foi possível ver a riqueza histórica e cultural do templo, além de verificar o que ainda restava do acervo original. A partir daí, teve início a recuperação iconográfica da edificação, que já havia perdido muito das suas peças de metal.
A recomposição da igrejinha contou ainda com obras de arte raras da coleção familiar do empresário, como as imagens de Santana com a Virgem Menina e São Joaquim, incorporadas ritualisticamente à igreja, em 1766. A imagem de Nossa Senhora da Lapa, instalada no nicho principal, também é original. O altar, no entanto, foi arrematado pelo empresário em um leilão e doado à igreja.
Os sinos da igreja, que foi a primeira a receber um carrilhão de 12 sinos presenteado pelo Barão da Lagoa em 1872, também foram revitalizados e voltaram a marcar o tempo, na Pequena Lisboa, em 2 de maio. Depois de mais de cinco décadas em silêncio, os sinos voltaram a badalar o “Angelus” duas vezes por dia – ao meio-dia e às 18h.
No mês de agosto, a joia católica ganhou outro presente, o relógio instalado no topo da edificação, que estava parado a mais de um século, foi reinaugurado com a bênção de Dom Roque Souza, em meio a uma igreja lotada de curiosos e fiéis. O relógio funciona 24h e, juntamente com os sinos da igreja, passaram a marcar a rotina dos cariocas.
Em entrevista ao jornalista Ancelmo Gois, do jornal O Globo, Cláudio de Castro falou sobre a importância do relógio, como peça rara e artisticamente relevante para o patrimônio do Rio de Janeiro:
“A cara do relógio, na fachada da igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, será a mesma, foi mantida do jeito que sempre foi. Mas, a nova máquina do relógio, que parou de funcionar há 101 anos, foi encomendada à Canonico Di Lagonegro, considerada a maior empresa de relógios de torres e igrejas da Itália. A Canonico existe desde 1879, criada por Michelangelo Canonico e, atualmente, dirigida por seu bisneto, que tem o mesmo nome, Michelangelo. A marca fabrica relógios para igrejas e edificações históricas da Itália, França, Portugal, Espanha, Rússia, Áustria, Grécia. Os ponteiros do relógio (que também estão parados há 101 anos) também virão da Itália. Foram confeccionados pela famosa empresa Ecat, de Milão. Um sistema informatizado ligará o funcionamento dos relógios ao dos sinos, com perfeita sincronia entre a movimentação dos ponteiros e o toque”, explicou Claudio André de Castro.
Com informações dos jornais O DIA e O Globo.
Não conhecia essa revolta.