Corpos Invísiveis invadem a Gávea, por Alvaro Tallarico

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Elenco e equipe do filme Corpos Invisíveis dentro do cinema da Estação Net Gávea levantam os braços uma das outras em sinal de vitória. Estão abaixo da grande tela de cinema que tem escrito Festival do Rio.
Elenco e equipe de 'Corpos Invisíveis' em uma sala da Estação Net Gávea (foto: Alvaro Tallarico)

A aula de Brasil começou ainda no térreo do Shopping da Gávea. Eram dois elevadores. Quatro mulheres negras esperando para um, e um casal negro esperando o outro. Fiquei ali atrás das mulheres, e foi o primeiro que chegou. Assim que parou, um casal de senhores brancos passou na minha frente e entrou no elevador atrás das mulheres negras. Não deve ter me visto. E olha que sou magro, mas não tanto… O elevador apitou dizendo que havia muito peso. Não consegui ouvir a conversa, contudo vi o senhor gestitulando. Ele chegara depois, mas iria exercer seus privilégios sem vergonha alguma. Assim foi. Após um tempo, as mulheres saíram, e ele subiu de elevador com sua senhora. Em suas faces, um ar aristocrático, monárquico, escravocrata.

Por outro lado, os rostos das muheres negras que saíram de seus lugares de direito estavam tristes, claro. Era a repetição de algo que acontece todo os dias em suas vidas desde sempre. Elas estavam esperando, como eu, para irem até o quarto andar para assistirem “Corpos Invisíveis”, um filme escrito e dirigido pela cineasta Quézia Lopes, que conta com relatos pessoais e artísticos de onze mulheres negras e seus desafios. A cena que via provava tudo que o longa-metragem me mostraria.

O segundo elevador apareceu. Entrei junto com o casal e elas vieram depois. O elevador apitou avisando que era muito peso. Não pestanejei e saí para subir de escada. Sou um brasileiro pardo. Quando morei em Portugal e pude passear pela Europa viviam perguntando se eu era do Marrocos ou do Egito. Fiz um ano de Mestrado em Estudos Africanos na Universidade do Porto. Isso foi durante a confusão da pandemia. Terminei as aulas, mas voltei ao Brasil sem conseguir iniciar a dissertação. Ainda não consegui retornar por lá para tentar finalizar. Por lá tive a sorte de estudar com várias mulheres negras, brasileiras em sua maioria. Foi impossível não lembrar das minhas colegas de turma, e de todas que encontrei na minha jornada pessoal, ao ver o documentário “Corpos Invisíveis”.

Corpos invisíveis em lugares sensíveis

O filme fornece um retrato das mulheres negras na contemporaneidade brasileira. Dessa forma, aborda assuntos como machismo, racismo, maternidade, gordofobia e aceitação. É impossível não se emocionar enquanto vemos a humanidade daquelas pessoas, quando, ao narrarem certos momentos, lembrarem, não conseguem conter o choro. Contudo, no meio disso, Quézia traz performances artísticas de Danielle Anatólio, Thais Ayomide, Bárbara Assis e Flaviane Damasceno. São belas cenas de dança, atuação e arte que trazem respiros poéticos em meio ao enfrentamento das dificuldades. Em especial, Danielle, que pesquisa corporeidade das mulheres negras, tem grande destaque, com discursos contundentes, e usa bastante de seus talentos artísticos no longa.

A atriz negra Danielle Anatólio deitada em um colchão que flutura no mar. Ela usa um vestido branco.
Danielle Anatólio em cena do filme (divulgação)

“Corpos Invisíveis” oferece uma mescla de orgulho e tristeza, batalha e ressignificação, desespero e esperança. Por diversas vezes não consegui conter a emoção, e as mulheres ao meu lado na sala de cinema, menos ainda. Via cenas do mar na tela grande e as ondas de lágrimas ao meu redor. O longa toca em lugares sensíveis, como Quézia me disse ao terminar a sessão: “São lugares doloridos, e nem todo mundo quer mexer nesses lugares, nos assuntos que são espinhosos, que doem”. É eficiente essa sensibilização reflexiva que o filme provoca. Já vi outras obras com temáticas semelhantes que não tinham esse mérito, não alcançavam o público ou se perdiam em repetitividades. Inclusive, achei curioso como a montagem me levou a crer várias vezes que o filme ia terminar, porém, não terminava, e vinha mais algum depoimento, seguido de alguma sensível performance artística.

Além disso, a trilha sonora conta com nomes como Xênia França, Serena Assumpção e Gilberto Martins, Di Ganzá, Elias Rosa e Allex Flores. São canções que enaltecem uma força ancestral e auxiliam, complementam com maestria, nas intenções que o filme procura passar.

Ali estávamos na Zona Sul do Rio de Janeiro com uma sala inteiramente lotada de mulheres e pessoas negras vendo mulheres negras protagonistas jorrando aflições, afetos, verdades e primor. Eram os corpos invisíveis ganhando visibilidade, cavando seus espaços, escalando a montanha. Na tela, por fim, são sorrisos de sobrevivência que sobressaem, num bom documentário.

Vi na sessão para convidados, entretanto, “Corpos Invisíveis” terá uma exibição aberta no Festival do Rio neste domingo, 08/10, às 16:30, na Estação NET Rio 5, seguido de debate.

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