Roberto Anderson: A cura

O mundo segue em crise, mas o The Cure continua. E fez um lindo show em São Paulo

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Era o início da década de 1980. O trabalho de garçom, num restaurante perto da Washington Square, era um dos vários bicos que a vida de artista sem recursos em Nova York oferecia. O lugar era bonito, tinha paredes decoradas com grandes espelhos barrocamente emoldurados. O que mais chamava a atenção era o bar, com suas estantes torneadas, de novo os espelhos, dezenas de taças penduradas, e a enorme variedade de bebidas expostas.

O restaurante, que já não existe, era bem frequentado. Muitas pessoas que iam assistir peças no Public Theater ali perto, antes jantavam no Garvin’s. Foi o que fez Jackie Onassis certa noite, gerando uma ciranda de garçons passando perto da sua mesa. Numa tarde de salão vazio, lá também esteve Rod Stewart. Desacompanhado, tomou com calma a sua bebida, sem ser importunado por ninguém.

A maioria dos garçons era de jovens. Alguns estudavam teatro, outros dança, apesar de também haver imigrantes em busca do sonho americano. O uniforme era calça preta, camisa de smoking branca, gravata borboleta vinho e sapato social. Mas, havia tolerância para tênis preto, se fosse de couro.

A formalidade pretensiosa do Garvin’s era o oposto da vida de cada um dos que lá trabalhavam. Nos momentos mais calmos, as conversas giravam sobre os projetos de vida, notícias de suas casas distantes (ninguém em Nova York parece ser de lá) e pequenas gozações com a cara de cada um. O sotaque dos estrangeiros era um prato cheio para isso.

Era o tempo em que a AIDS crescia assustadoramente e pouco ainda se sabia sobre ela. Todo mundo tinha algum amigo ou conhecido tocado pela doença e isso desestabilizava, gerava medo. Eram também os tempos dos governos reacionários de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, confirmando que sim, o sonho havia acabado. Apesar de tudo, o mundo pulsava com a sensação de que a vida estava por um triz. Tudo mudava, e não se sabia bem para onde ia.

Foi num momento de preparação do salão para o jantar que o barman colocou pra tocar uma fita do The Cure. Era uma batida forte e com muita melodia, a voz angustiada e sufocada de Robert Smith exalando revolta. As letras absurdamente sombrias e desesperançadas eram a cara do momento. Boys don’t cry. Na capa, estava estampado o visual gótico. Identificação e paixão imediatas. Guardado o nome na memória, na primeira possibilidade a fita cassete foi devidamente comprada, passando a ser ouvida over and over.

Os perrengues da vida num país estrangeiro, os dias de frio, o sair para o trabalho com o dia escurecendo, porque é assim no inverno, os desencontros amorosos, mas também as conquistas, as descobertas, os progressos, tudo podia ser pontuado pelo romantismo estranho, pela melancolia ou o niilismo do The Cure.

De volta ao Brasil, apesar da claridade ambiente, os tons sombrios da banda continuavam a fazer sentido. Era como se o batom borrado agora o fosse pela ação do sol e do suor. Tentar rir disso, it’s Friday, I’m in love seguiu batendo forte. A fita cassete ainda existe, mas já não há mais onde tocá-la.

Agora, em 2023, a Thatcher se foi, o Reagan idem, o mundo segue em crise, mas o The Cure continua. E fez um lindo show em São Paulo.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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