Quando o inglês Thomas Paine (1737-1809) chegou à Filadélfia no final de 1774, surpreendeu-se diante da expressiva modernidade daquela “Cidade do Amor Fraterno”. Criada em 1682 pelo fundador do quacrerismo norte-americano, William Penn, Filadélfia, com seus 35 mil habitantes, era considerada a verdadeira capital do então Novo Mundo, além de, demograficamente, ser a segunda cidade do Império Britânico. Aos olhos do jovem Paine, que trazia na bagagem a lembrança de uma Inglaterra mergulhada na injustiça social e na corrupção sob o reinado de Jorge III, e cuja capital, Londres, experimentava os horrores da pobreza e do desemprego (com uma legião de miseráveis habitando ruas e barracos nos bairros pobres da cidade), a nova urbe chama a atenção pelo seu ordenamento, com artérias desenhadas segundo um plano racional, com coleta regular de lixo e um serviço de limpeza das ruas, um destacamento de bombeiros e um sistema de iluminação pública, além de uma polícia municipal que garantia a ordem e a tranquilidade. Um conjunto de benefícios que, na ocasião, ainda não haviam surgido na Europa.
Pode parecer estranho resgatar o passado tão distante dessas duas cidades, porém, é interessante observarmos a expressiva diferença entre elas, sobretudo quando uma figura entre as mais importantes do berço da civilização ocidental. Evidentemente, as disparidades sociais e estruturais são compreensíveis, na medida em que Londres, além de mais antiga (e, portanto, mais sobrecarregada), vivenciava naquele século os efeitos da Revolução Industrial.
Guardadas as devidas proporções, a Filadélfia descrita no livro de Bernard Vincent (1989) se assemelha em parte a Ilha do Governador da primeira metade do século XX, com uma população bem pequena, satisfatória às dimensões geográficas do local, incluindo um hospital de referência (Paulino Werneck, inaugurado em 1935), ruas arborizadas e delimitadas por casas com jardinzinhos. No ar, sinais de prosperidade, assim como – ao contrário do que nos atormenta hoje – ordem e tranquilidade. Nunca tivemos uma polícia municipal que pudéssemos chamar de “nossa” e que nos garantisse esses direitos fundamentais (mesmo porque nunca fomos cidade), contudo, não me recordo de, na história recente, estarmos tão sujeitos aos imprevistos da atividade criminosa.
O sociólogo e professor do IFCS/UFRJ Luiz Antônio Machado da Silva redigiu um artigo muito interessante sobre as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), logo no início de sua implementação. Ele afirma que, ainda que existissem evidências consistentes de que a nova política pública apresentasse pontos positivos, a expectativa de uma cidade calma e serena é um mito inatingível que poderia por a perder a própria experiência das UPPs. Na prática, diz ele, “as UPPs, idealmente, devem se generalizar, mas não se propõe universalizá-las para toda a cidade”. Este seria um nó complicado a ser resolvido na substância da política de segurança pública, tendo em vista que, mediante a existência de um importante elemento de visibilidade envolvido no projeto – o que motivou e motiva sua implantação em bairros e eixos estratégicos – as UPPs contém, na prática, uma dimensão de reforço à dualização da cidade. Ou seja, na prática essa política pública reforçaria, segundo o autor, a repartição da cidade, com áreas/bairros contemplados com a pacificação em detrimento de outros.
Com isso, o professor Machado da Silva chama a atenção para um fenômeno relevante decorrente do projeto. Diz ele que os pontos de concentração das atividades criminais não são fixos. O aguçamento do controle repressivo em certas áreas pode provocar migração e/ou pulverização da atividade e não necessariamente sua redução. A violência continua, porém pulverizada. Os sentimentos do medo e da insegurança persistem sustentados em dados consistentes.
A Ilha do Governador tem apresentado dados da segurança pública que exigem atenção. Tem sido recorrentes na região a prática de duas modalidades de crimes: a saidinha de banco e os assaltos em ônibus frescão. As “saidinhas” aumentaram assustadoramente (a 37 DP registrou seis ocorrências nas últimas semanas), enquanto que os assaltos no transporte público tornaram-se rotina para os usuários. Alguns representantes das forças policiais chegaram a atribuir esse aumento à migração da violência em decorrência da ocupação militar no Complexo da Maré.
Entre dezembro de 2014 e julho de 2015, alguns números preocupantes chegaram a ser apresentados pela autoridades de segurança nas reuniões do Conselho Comunitário de Segurança da Ilha, o que pode estar contribuindo para o aumento desses delitos. Foi divulgado que tanto a PM quanto a Guarda Municipal – duas corporações que podem atuar no patrulhamento ostensivo – dispõem de efetivos muito aquém das necessidades da região. A GM possui hoje 96 guardas, mas apenas 44 atuando, diante de uma oferta ideal de 147 homens (segundo o subinspetor da 12 IGM, mais 10 guardas reforçaram o patrulhamento). Já a PM possui 175 policiais, enquanto a disposição ideal seria de 1000 homens. A GM tem se colocado a favor de contribuir com a ronda escolar, ainda que não seja sua atribuição. O 17 BPM justifica que tem buscado melhorar o policiamento, deslocando viaturas para pontos estratégicos.
Fato é que a presença desses agentes de segurança não é mais observada nos centros de grande fluxo, circulando em duplas ou em grupos, inibindo a criminalidade. Talvez o motivo seja mesmo o baixo efetivo de ambas, o que é inadmissível no que tange a uma região-cidade com 16 bairros e mais de 200 mil habitantes. E com o efeito migração/pulverização, muito bem destacado por Machado da Silva, a redução desses crimes vem a ser o novo desafio imposto ao governo do Estado enquanto a Ilha do Governador não figura no eixo estratégico propagandístico das UPPs.