Quase dois meses depois do início das enchentes no Rio Grande do Sul, seguimos com os olhos voltados para o estado. Diante dos mortos e desabrigados, das imagens de imóveis e infraestrutura urbana em escombros e do baque na economia, é natural que as primeiras discussões sobre a tragédia se concentrem nos dramas pessoais e no trabalho de reconstrução. Em breve, porém, encararemos uma questão mais ampla: os reflexos sobre a saúde mental de nossa população como um todo.
Sim, um episódio como este exporá não apenas o bravo povo gaúcho, mas todos os brasileiros, ao transtorno de estresse pós-traumático. Ele surge depois de experiências perturbadoras, vividas in loco ou até à distância, a partir de cenas e relatos de forte efeito emocional. Devemos ficar atentos a sintomas de ansiedade, angústia, depressão e abuso de álcool e outras substâncias: mesmo não ocorrendo logo após a catástrofe, as causas podem estar ligadas a ela. Por outro lado, a onda de solidariedade que o caso gerou oferece um mecanismo apaziguador do transtorno psiquiátrico, ao despertar um comportamento que parecia andar em falta entre nós: a empatia.
As imagens de uma catástrofe climática têm, claro, efeito mais intenso em pessoas que vivem em locais já em processo de degradação. Elas despertam a consciência de que nosso lugar no mundo, que conhecemos e amamos, está ameaçado, provocando uma sensação de inquietude e melancolia que o filósofo Glenn Albrecht, professor de Sustentabilidade na Universidade de Murdoch, descreveu como “solastalgia”. Uma engenhosa combinação do termo latino solacium (conforto) com o sufixo de raiz grega algia (dor, sofrimento, pesar).
Seria, portanto, a dor pela perda iminente do conforto de um lugar acolhedor e querido, num contexto de impotência e luto muito comum em comunidades que dependem diretamente do ambiente natural para sua sobrevivência e bem-estar, mas não somente nelas. Os moradores de grandes cidades também podem vivenciar essa angústia e sofrimento psicológico, estando suscetíveis, portanto, ao mesmo quadro de ansiedade e uso excessivo ou indevido de substâncias químicas – lícitas ou não –, gatilhos para o surgimento ou evolução de diversos distúrbios mentais.
A manifestação desses transtornos, como vimos, nem sempre é imediata: eles podem ocorrer em até 10 anos, de acordo com a predisposição dos afetados a enfermidades mentais e o nível de sua exposição à tragédia. Isso inclui os profissionais e voluntários envolvidos no desgastante resgate de pessoas e animais. Apesar da louvável dedicação, nem todos têm a resiliência suficiente para situações extremas, e o ideal é aproveitá-los em tarefas mais amenas. Essas pessoas também precisarão de forte apoio psicológico para amenizar a dor decorrente de um evento dessa magnitude.
São feridas não apenas permanentes, mas também transmitidas para as próximas gerações, diz o neurocientista Eric Kandel, ganhador do Nobel de Medicina por seus estudos sobre a memória e aprendizado. Ele afirma que traumas severos podem provocar as chamadas mudanças epigenéticas, que, mesmo sem mudar a sequência subjacente do DNA, alteram a expressão dos genes. Esse processo neurológico, segundo ele, tem influência sobre o comportamento e a resposta ao estresse tanto dos diretamente atingidos pelo episódio traumático quanto de seus descendentes.
Estamos, portanto, diante de um problema que ultrapassa a reconstrução da infraestrutura, reerguimento econômico e atenção às demandas imediatas da população local. As urgentes medidas de prevenção devem, claro, ter foco no indispensável cuidado com o meio ambiente, mas precisam incluir o fortalecimento de nossa rede de serviços públicos de saúde mental. Isso interessa a toda a sociedade, até porque, infelizmente, nada que indica que essa seja a última tragédia do gênero.
*Jorge Jaber, psiquiatra, membro fundador e associado da International Society of Addiction Medicine, associado da New York Academy Of Sciences, da American Psychiatric Associations – APA e da World Federation Against Drugs – WFAD