60 Anos de Mafalda: um ícone que continua a inspirar gerações

Mafalda não é apenas uma criança curiosa; ela é a voz de uma geração

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Fui instigado a escrever este artigo por um vídeo que meu filho mais velho me enviou. Assim como eu, ele é um grande fã das tiras da Mafalda. O vídeo, que compartilho mais abaixo, traz uma cena emblemática do filme “Dar la cara”, onde o nome Mafalda foi visto por Quino, o genial criador dessa personagem tão icônica. Esse vídeo me fez refletir sobre o impacto dessa pequena menina nos últimos 60 anos e, claro, celebrar esse marco que ocorre em 2024.

Mafalda, criada pelo cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado, conhecido como Quino, nasceu em 1964. Mas sua origem remonta a 1963, quando Quino foi contratado para criar uma campanha publicitária para a empresa de eletrodomésticos Mansfield. A empresa exigiu que o nome da personagem começasse com a sílaba “Ma”, para remeter à marca Mansfield. Foi nesse contexto que, ao assistir ao filme “Dar la cara”, Quino se deparou com o nome Mafalda, durante uma cena em que dois personagens discutiam ao lado de um berço, e assim escolheu o nome.

Embora todo o projeto estivesse em andamento, a campanha publicitária nunca foi ao ar porque o jornal Clarín, onde os anúncios seriam publicados, rompeu o contrato com a empresa Mansfield. Sem o apoio do Clarín, a campanha foi cancelada e a Mafalda que deveria aparecer nos anúncios de eletrodomésticos nunca chegou a cumprir esse papel comercial.

No entanto, Quino viu o potencial da personagem além do marketing. Foi então que, sob a sugestão de Julián Delgado, editor-chefe da revista Primera Plana e amigo de Quino, ele decidiu transformar Mafalda em uma tira de quadrinhos. Assim, em 29 de setembro de 1964, a personagem foi publicada pela primeira vez, desta vez não como parte de um comercial, mas como uma crítica social e política disfarçada na forma de uma criança questionadora.

Mafalda não é apenas uma criança curiosa; ela é a voz de uma geração. Sempre preocupada com a humanidade, a paz mundial e revoltada com as injustiças do mundo, suas tiras refletem as questões sociais e políticas dos anos 60 e 70, especialmente na América Latina. Publicada entre 1964 e 1973, Mafalda se tornou um fenômeno, traduzida para mais de 30 idiomas e adorada em todo o mundo.

A tira transcendeu fronteiras, abordando temas como a guerra, as desigualdades e o futuro do planeta. Mafalda e seus amigos, como Manolito, Susanita, Felipe e Libertad, foram personagens que trouxeram para os quadrinhos discussões complexas de forma acessível, sempre com humor e ironia.

O vídeo abaixo, que me foi enviado pelo meu filho, mostra a cena exata de onde Quino tirou o nome da Mafalda. A inspiração veio do filme “Dar la cara”, de José Martínez Suárez, lançado em 1963. Na cena, dois personagens discutem ao lado de um berço, onde está uma bebê chamada Mafalda. Quino viu ali a oportunidade perfeita para batizar sua nova personagem, que inicialmente seria usada para a campanha publicitária da Mansfield.

https://drive.google.com/file/d/1bvfBw2xKG-1eDaQaVMRmqGotZ9_7hdNV/view?usp=drivesdk

Celebrando os 60 anos de Mafalda, a Netflix anunciou que lançará uma série animada baseada na personagem. A produção será dirigida e roteirizada por Juan José Campanella, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010 por “O Segredo de Seus Olhos”. No vídeo de divulgação dessa série, vemos Mafalda interagindo com um mapa-múndi e, em sua visão crítica e desafiadora, ela inverte o mapa, colocando a América Latina no topo e a América do Norte embaixo.

Essa inversão do mapa é uma poderosa metáfora que remete à obra “América Invertida”, do artista uruguaio Joaquín Torres García, criada em 1943. Torres García subverteu a ordem tradicional dos mapas, onde o hemisfério norte é sempre representado no topo, e posicionou a América Latina como o centro e o ponto mais alto do mundo. Sua obra foi uma crítica à visão eurocêntrica e uma afirmação da importância do sul global. A cena de Mafalda mexendo no mapa é um gesto que conecta a personagem à luta por autonomia cultural e intelectual da América Latina, algo que sempre esteve presente nas suas tiras.

Assista ao vídeo da produção da série no seguinte sítio:

Para os fãs, como eu, que desejem revisitar a Mafalda em um formato informativo e documental, recomendo assistir à docussérie “Voltar a Ler Mafalda”, disponível na plataforma Disney+. O conteúdo é uma excelente forma de mergulhar na história e legado da personagem, que há 60 anos encanta o mundo com sua visão crítica e bem-humorada.

Assista ao trailer da docussérie no seguinte sítio:

Antes que alguém questione a palavra que usei acima, informo que, segundo a Academia Brasileira de Letras, o termo “docussérie” é definido como:

“Obra audiovisual de caráter informativo, exibida em episódios, que registra fatos, eventos ou histórias da vida real, geralmente por meio de depoimentos, entrevistas e imagens de arquivo. [Também se diz série documental.]”

Estamos ansiosos por essa nova série animada, que promete trazer Mafalda para uma nova geração, sem perder sua essência crítica e bem-humorada. O diretor Juan José Campanella publicou uma carta emocionante sobre sua relação com a personagem, que compartilho na íntegra abaixo:

“Eu tinha sete ou oito anos quando foi publicado o primeiro catálogo de tirinhas de Mafalda em forma de livrinho. Meus pais liam as tiras e me diziam que eu não ia entender. Que ofensa. Que desafio. Corri para comprá-lo e ainda me lembro de subir a ladeira de Melo enquanto lia, dando gargalhadas e admitindo que, de fato, havia tiras que eu não entendia. Mafalda e seus amigos não só me faziam rir muito, mas de vez em quando me mandavam ao dicionário. E cada palavra nova que eu aprendia vinha com o prêmio de uma nova gargalhada.

Logo eu já era mais um da turma da Mafalda. Posso citar muitas piadas de memória, mas como hoje enfrento esse enorme desafio, não vou começar com os spoilers.

Corte para décadas depois, em plena produção de Metegol. O mestre Quino veio visitar nosso escritório de produção. Havia quase 200 artistas de diferentes gerações e para todos nós era como se Deus tivesse entrado. Lembro que foi nesse dia que Quino tentou, pela primeira vez, desenhar com um lápis digital. Um gigante como ele, que inspirou gerações de desenhistas com seu traço, e muitos outros humoristas com seu senso de ironia e comentários perspicazes, estava dando forma a um traço, mas como nunca antes, sem tinta nem papel. Seu entusiasmo era o de uma criança com um brinquedo novo, fazendo dezenas de perguntas. O entusiasmo e a curiosidade de quem nunca acreditou saber tudo.

Desde essa visita, começaram a surgir perguntas. Como podemos reconectar as novas gerações que não cresceram com Mafalda a essa grande obra? Como podemos levar seu engenho, sua mordacidade, às crianças que hoje crescem em plataformas digitais? Como podemos, enfim, traduzir uma das maiores obras da história do Humor Gráfico para a linguagem audiovisual?

Hoje, doze anos depois dessa visita inesquecível, enfrentamos esse desafio. Nada mais nada menos que transformar Mafalda em um clássico da animação. É nossa obrigação preservar o humor, o timing, a ironia e as observações de Quino. Sabemos que não podemos elevar Mafalda, porque mais alta ela não pode estar. Mas sonhamos que aqueles que são devotos dela desde o início possam compartilhá-la com nossos filhos, e embora haja coisas reservadas apenas para adultos, todos possamos soltar uma gargalhada em família, e por que não, recorrer ao dicionário de vez em quando.

Sem dúvida, de longe, o maior desafio da minha vida.”

Ao ver, na carta acima, o trecho em que Campanella fala que, ao ler a Mafalda, ia ao dicionário para poder entender algumas palavras, me lembrou que muitas crianças brasileiras aprenderam a ler folheando as páginas coloridas da revistinha da Mônica, criada por Maurício de Souza, mergulhando nas aventuras da turma que marcou gerações e incentivou o hábito da leitura desde cedo.

Com 60 anos de existência, Mafalda continua sendo uma das personagens mais relevantes dos quadrinhos, e sua mensagem é mais atual do que nunca. Enquanto aguardamos ansiosamente a estreia da nova série, ainda sem data, podemos revisitar suas tiras e refletir sobre o mundo com o olhar crítico e questionador dessa pequena, mas gigantesca, personagem.

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